segunda-feira, 20 de abril de 2009

O outro Ganges

Conta a lenda que o rio Ganges tem um rio irmão-gêmeo em outra esfera, em outra dimensão, ou sei lá onde. Pouco se falou sobre ele e quase nada sobre seu leito ou sobre suas águas. A respeito do tal rio, sabia-se que tinha águas caudalosas, compactas e conduzidas como num adágio para cordas. Sobre este outro Ganges, livros foram escritos. O mais velho homem do rio disse ter ouvido falar sobre o misterioso leito, mas ele mesmo é analfabeto e só alega conhecer a linguagem dos pássaros e o pensamento dos peixes. Esse homem velho conta que seu avô ouviu de seu bisavô que, na época em que havia poucas jangadas e portanto pouca gente vivendo sobre suas águas, o rio era quase gelado, por isso o maior perigo era pegar a gripe marrom, apelidada devido à cor da secreção expelida pelo doente. Agora, o velho, que tem que amarrar a barba para trás, já que cortá-la foi proibido pela sua própria lei, cospe de lado e reclama: a água esquentou demais. Diz que os livros, quando existiram, foram queimados no dia seguinte a uma espécie de pororoca que acontecia de cem em cem anos. E dali pra frente, uma maldição teria se abatido sobre quem quer que escrevesse ou falasse sobre o que existia sob aquelas águas. Segundo o ancião, as palavras usadas pra descrever o “além-abaixo-d’água” foram esquecidas, mas uma menina de cinco anos, que nascera com dons advinhatórios, teria vindo ao mundo com a missão de reescrever a história perdida. Centenas de peregrinos, uma vez por ano, caminhavam de jangada em jangada, até a última delas que servia de chão para os que não vivessem a nadar, repetiam a mesma cantilena, aprendida da menina que vivia de olhos fechados e entoava um alaúde melancólico. A canção da menina dizia: “Existe um livro. Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles esteja vivo”. E seguia cantando e tocando seu alaúde.
Assim, mesmo com o mistério atormentando os crentes, como a água tornara-se menos gelada, os banhos eram festejados por todos. As crianças se tornavam desde muito cedo exímias nadadoras e não havia notícia de afogamento, pois, mesmo com profundidade desconhecida, a água era densa, com tantos minerais e sais desconhecidos que era difícil afundar. Beber dela, se podia, mas nunca junto com outra bebida ou comida. Assim, o costume prescrevia um tipo de ritual que era infalivelmente realizado três a quatro vezes por dia. Durante dez minutos, toda vez que alguém sentia sede, a tradição mandava a pessoa necessitada encontrar uma outra, dar as mãos, fechar os olhos e, voltada para a contra-correnteza, ficar imóvel respirando fundo. Só então, tomava a quantidade de água que desejasse.
Como um palco em movimento, um estande do tempo, o rio segue prenhe de histórias.