sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Brasília Litania Beat

Brasília eu ando meio triste com você. Brasília eu ando pela w3 com suas lojas decadentes, e não encontro mais o que olhar. Brasília teu espaço te condena a ter grades. Brasília liberta tuas calçadas e jardins! E libera o grafite. Que a w3 seja uma galeria imensa e aberta, um grande Espaço Renato Russo.
Brasília eu não quero ter carro, eu não quero pegar sinal, nem passar por pardal. Brasília pára de me mandar boleto de multa!
Brasília quero ver tesourinha pela janela e fazer tesourinha, Brasília teu cheiro é de terra vermelha e obra suspeita, onde tá o ipê amarelo da 714?
Brasília minha barba machuca a pele do meu amor por você. Vou raspar, mas nem sei se vou. Brasília um cara de boné me disse que não tem dinheiro pra voltar pro Goiás e tá na casa de um parente em Águas Lindas. Brasília e suas novas satélites barbarizadas. Brasília apartheid do espaço da grana. Muita grama por aqui e pouca grana pra lá. Brasília respeita os candangos e os novos. Brasília o nordeste também é aqui. Brasília meu pé dói no calcanhar e não consigo chegar ao Conic caminhando.
Brasília o cara disse que a igreja vai ajudar e que deus abeçoe. Brasília o teu deus foi erguido por um trator e endurecido no cimento. Brasília JK não te deixa viver, vamos fazer uma reza pra ele parar de nos assombrar. Brasília planta uma árvore na praça do museu e convida a gente para passear. Quero sentar à sombra de um ipê e olhar o horizonte. Chega de concreto armado, Niemeyer. Brasília vamos armar outra coisa.
Brasília deixa a gente olhar o céu de noite na Esplanada. Brasília suas superquadras são ótimas pra olhar o futuro e não ver nada. Ainda bem que posso fumar um na grama da 107. Brasília cadê as ciclovias? Pedalo suas retas na noite do meu infortúnio e encontro um cara que me convida a uma festa. Brasília tem gente muito louca fazendo dança indiana e tomando chá nas mansões do Lago. O cara com um olho azul e outro castanho disse que vai pra Chapada pro ritual da lua. Brasília vamos pra São Jorge curar nossas mágoas e as dores do mundo enquanto desce um disco?
Brasília eu navego em tuas águas paranoás, deslizando a barca de Creonte. Empurro gôndolas mortuárias e enxergo tumbas na beira do lago. É neste lago que chamo as almas para voltar ao outro mundo. Há um portal na Ermida Dom Bosco. Pra lá seguem os que desistiram de encontrar razão pra isso tudo. (depois de procurarem em computadores do ministério da indiferença programada).
Brasília falei com um camarada de escola no twiter que não sai mais de casa e coleciona estátuas do Dois Candangos. Tem dois carros apodrecendo na garagem. E vários ternos puídos no armário. Brasília a menina que eu amo já não mora mais aqui e já não quero amá-la. Brasília eu cansei de calotar ônibus e pichar banheiro, nonsense de boy.
Brasília teu punk rock toca em boate de playboy. Brasília assassinaram, a facadas, um casal e a empregada no sexto andar. Brasília a gangue amarela usou o Orkut para marcar porrada no parque contra a gangue vermelha. Brasília pede uma massagem tailandesa, bebe um bálsamo de flores do cerrado e dissolve essa raiva contida. Brasília pode chorar. Brasília vem me dar um abraço. Brasília ainda posso andar por debaixo dos blocos e passar a mão nos pilotis?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A história do bailarino

(Ventava e ainda havia restos de lixo espalhados pelo chão onde alguns cachorros se refestelavam. Pedaços de papel e sacos plásticos voavam como pipas. As folhas do outono se acumulavam em montes varridos durante a madrugada. A freada de um caminhão de lixo se fez ouvir perto do teatro, disparando o latido dos cachorros. Ao fechar a porta dos fundos do teatro atrás de si, o prazer do ar quente agitou o sangue que pulsava pela face e acalmou o lacrimejar causado pelo vento frio).

Quero contar a história do bailarino que se jogou da galeria do Teatro Municipal.
Quero contar a história de um amor que começou atrás das coxias, mas depois de um tempo escancarava-se a qualquer platéia. De um beijo que durou a eternidade de um átimo de segundo; e depois, durou a eternidade de um longuíssimo pas-de-deux enquanto a cortina não abria. De um bailarino que até então não havia chegado perto de outro e que estava cansado de ser empurrado para braços femininos alheios. Ali, atrás de cordas e roldanas, de maquinários engraxados, de desvãos misteriosos e escadas estreitas, o amor pôde acontecer.
Quero contar a história do bailarino que, antes de se jogar da galeria do Teatro Municipal, descobriu o amor em alongamentos infinitos de preparação corporal. De um amor que foi se fazendo aos poucos entre bailados clássicos e populares, minuetos e mazurcas, sapatilhas e tornozeleiras sujas de talco.
Quando começou, o breu e o odor de fungos dos corredores causavam náuseas aos bailarinos. Maquiadores, montadores e figurinistas andavam com remédios de pingar às narinas durante montagens que podiam virar a madrugada. Quando o amor vislumbrou a aurora da possibilidade, num dia em que tudo parecia quieto e menos insuportável dentro dos camarins, um beijo roubado, um simples beijo roubado durante um segundo de distração, num momento de concentração solitária, fora de qualquer senso de espaço porque o beijo houve como se não houvera ocorrido; e não tivesse como, nem onde, nem quando daquilo ocorrer - e disparou o relógio do resto de uma vida.
Quero contar a história da busca desenfreada pelo autor do furto. Um roubo que se transformou em troféu, depois, em razão de existir e no leit motiv de uma ópera particular. Mesmo não havendo evidência, o autor já havia sido eleito. O culpado havia sido apontado como o outro elo de uma flechada de cupido. A flecha de um cupido meio torto zumbiu. Um cupido que tentara colorir o destino com cores barrocas, de sutis claros e escuros que inundavam os corredores do teatro e a mente turvada de um bailarino apaixonado.
Em meio a isso tudo, quero avisar da existência uma “preferida”. E a preferida era muito amiga daquele que tinha o nome escrito na flecha disparada na câmara de ensaio às escuras. Evento que ficou marcado a ferro e fogo como o beijo roubado misterioso. Ela, a preferida, gostava de trocar músicas no ipod e filmes em DVD com os bailarinos. Costumava trazer misturas de granolas super-energizadas e fazia um esforço visível para ser simpática com todos, mas a comunicação e o trato com aquele que era “a fonte do amor” acontecia de forma naturalíssima. Neste triângulo, a ponta de ângulo menor, onde se encontrava o bailarino de quem fora furtado o beijo, acenava a quiilômetros de distância os outros dois. E, apesar de tudo, aquele que sofria as dores do coração encheu-se de carinho pela preferida do seu grande amor.
Quero contar a história do dia em que não podendo mais suportar a distância, encurtou o caminho em direção à preferida e se apresentou. Depois de elogiar o tecido da saia e o rigor nos laços da sapatilha dela, perguntou se não poderia assistir ao ensaio dela e do seu “amigo” um dia, já que ele próprio ensaiava em outro horário. Ela disse “claro” e convidou-o para um café. Naquele mesmo dia, ele pôde jurar a si mesmo que descobriria tudo, pois perguntaria a ela e mesmo não perguntando a faria confessar o crime do beijo roubado. Rodeou-a de perguntas e comentários imprecisos que fizeram a preferida dar uma desculpa qualquer e ir embora. Nos outros dias ela começou a evitá-lo educadamente. Depois, nem mesmo o cumprimentava. E um ouriço negro começou a nascer dentro do seu peito.
Quero contar a história de alvoreceres angustiados na porta do teatro a espreitar a chegada dos bailarinos. De ensaios catatônicos e coreografias insossas. A história de um ouriço que cresceu espetando seu coração até o dia em que de olhos bem fechados, no mesmo local de ensaio escuro, recebeu outro beijo.
Aí foi quando uma luz branca se ascendeu nos seus olhos.
Quero contar a história do bailarino que não podendo mais controlar seus movimentos, tateou desesperadamente o ar e finalmente encontrou as mãos mais macias e fortes do mundo. Esforçou-se para ver e viu, mediante cores mais vivas e menos nítidas, o contorno dos braços, dos ombros, do pescoço, do queixo proeminente e dos lábios roxos que o haviam tocado. Sentiu o cheiro doce do suor e o hálito quente se esparramando pelo seu corpo e deixou-se tomar por inteiro daquele momento.
Quero contar a história do bailarino que, sem nunca antes ter recebido um beijo verdadeiro, apenas cumprimentos frios e carinhos furtivos de parentes distantes e pais de criação, acordou numa banheira de lembranças inesquecíveis. E a cada dia, lembrado-se menos do que havia experimentado da frieza do mundo ao seu redor, só tinha olhos para dentro de si, onde um mundo novo se revelou. Um mundo de toques inesperados, beijos roubados em quartos pequenos ou mesmo no meio de um ensaio cheio de gente, além de olhares tão discretos quanto imperceptíveis para qualquer um que não fosse ele mesmo. A primeira vez que decidiu fechar os olhos atrás das cortinas do teatro, conseguiu ver melhor porque de repente todo seu corpo foi capaz de enxergar, com mil olhos, uma enchente de afeto. Já não era preciso subterfúgios, discrição, ponderação. A qualquer hora, depois que chegava ao teatro, os encontros se sucediam e já não se lembrava como tinha chegado, e nem a que horas tinha saído no dia anterior. O tempo presente ocupava com tanta intensidade sua existência que já não sabia direito o que tinha feito, nem quem havia sido antes de entrar no teatro.
Quero contar a história do bailarino que decidiu um dia não ir mais embora e passou a noite dentro do teatro vazio, na sala de ensaio escura, em meio à pletora de carinho e afeto que ele produzia como uma usina solitária. Já não se comunicava com mais ninguém. Passou a ter dificuldades de distinguir os rostos dos outros bailarinos e, antes de conseguir reconhecer apenas o seu amor, ainda pôde chegar perto da “preferida” para perguntar o que ela achava daquilo tudo.
Quero contar a história do bailarino que não entendeu por que a “preferida” resolveu enterrar uma estaca em seu coração. Por que ela, uma semana depois daquele café, na semana durante a qual todo o amor do mundo parecia pingar das paredes do teatro, se afastou depois de dizer “repare bem” e caminhou em direção à fonte de todo amor para beijá-lo longamente na boca.
Aí já era tudo fumaça e tontura.
Quero contar a história do bailarino que cambaleou pelos corredores do teatro sem controle das próprias pernas. Que decidiu subir ao local mais alto, à galeria. Que não via direito por onde ia, mas pôde lembrar, durante o caminho para as galerias, esbarrando em cordas e vasos caros, de lugares escondidos onde o amor aconteceu. Lembrou, durante o caminho, de sua vida opaca antes do beijo roubado, lembrou, com os olhos anuviados, como fôra duro seu percurso para chegar até o teatro, para conseguir se tornar um bailarino, para aprender a dançar e a viver sem ter conhecido o amor, o único, que se revelou há apenas uma semana. Voltou a sentir os efeitos dos fungos que habitavam o interior do teatro e começou a ter dificuldades de respirar. Percebeu a temperatura do corpo subir e a visão escurecer mas conseguiu subir as escadas arredondadas que levavam à galeria.
Quero contar a história do bailarino que viu o tempo congelar e flutuou. Do instante em que viu o filme da sua vida inteira passar enquanto sentia o frio correr pela espinha. Do ouriço que havia rasgado seu coração e o impedido de tocar o seu amor. Do beijo roubado e do amor arrancado.

(O peso do ar dentro do teatro aumentou a ponto de as lâmpadas se apagarem sozinhas. Algumas estouraram e alguns pipocos podiam ser ouvidos de quando em quando. Um besouro cruzou o palco e foi cair de pernas para o ar sobre o sangue espesso que ficou empoçado na última fileira da platéia).