domingo, 16 de maio de 2010

Descafeinada

Cadê a moça do cafezinho?
Não veio hoje
Pronto. Acabou o meu dia.

Ela não podia me faltar
Tem gente que não mede o estrago que pode fazer
Numa tarde insípida e descafeinada

Secura

Na calçada quente dos arredores da rodoviária havia uma névoa de brancura seca. Uma nódoa esturricada no ar empurrava o céu pra baixo, em direção à calçada quente dos arredores da rodoviária.
Era possível chorar pra dentro? Provavelmente, mas faltava a ardência no peito pra ser choro. Faltava o desespero e a dor. Faltava querer abrir a boca e, arfando, franzir a face. E soluçar alguma pedra invisível goela a fora. A boca seca como um papel em branco. A língua como um cacto machucando as bordas internas da bochecha.
Era possível chorar pra dentro? Só se não existisse aquele ônibus das sete de manhã. Se o sol não o houvesse decepcionado ao se obscurecer... Todo o cinza caído sobre sua alma de pedestre sonolento. Todo o céu espiando o vai e vem proletário. Formigas seguindo o caminho das outras. Visão etérea e espectral da urbe infinita.
A calçada inflamável ardia uma camada embaçada na superfície. Um vulto chacoalhou seu abdômen enquanto tentava tirar uma remela do olho. Uma lágrima solidificada na poeira do asfalto. “Chega de tentar chorar porque não adianta pra nada”. Foi o que se ouviu dizer, mas... Como teria adivinhado a dificuldade de exprimir aquela regurgitação subjetiva: uma pedra que permanece enterrada numa lagoa escura de fel. Mesmo que descesse as escadas, trôpego de culpa e embriaguês, ainda assim, a plataforma da rodoviária não giraria o relógio ao contrário.
A calçada tá muito quente, disse pra si mesmo, retirando a mão do chão e protegendo o tronco com o cotovelo e o braço. A camisa escaldante de suor. Uma luz branca e forte e depois um pretume tingido de azul e roxo mancharam a visão e logo não podia mais enxergar nada.
A calçada tá muito quente, foi a última coisa que se lembra ter dito.