segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Decepção


Interromper a possibilidade do amor
Com um corte na árvore do desejo
Terminar o que não começou

Decepar as opções
Não discriminar o distinto
E descriminar o desigual

Consertar o oblíquo perfeito
Olhar tudo com olhos pra dentro
Não ver, não ver, não ver.
Aí, não ter, não ter, não ter.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Coréia

Evoé! Ex-jovem no velho oriente.

Belamente, a bela não mente, fala a verdade. Sim, noite caiu, mas o dia virá para me lembrar que aquela mina não estará mais comigo.

Qual será o sijo de hoje?
Fustigar a chuva, embalsamar o vento. 
Conter o sopro matutino à beira do rio, 
Salvar a chama que vai se apagar.

Ter que fazer sentido, o caractere sobre a tela. Ondas de neon rebatem retinas frágeis. Ondas de torpor azedam o dia seguinte. O dia segue. Tecla, tecla, tecla, enter.

Qual será o sijo de hoje?
Granulada seiva que sobe às folhas,
Infinita semente secando ao sol,
Poeira no ar - o esquecimento inclemente.

Minha mãe falou: Meu filho... Desce daí, seu danado. Quando fizer xixi, rodeia a casa e agradece, esfrega bem os olhos. Despeja o sal da vida na minha barriga.

A pele repuxada, a pele cheia de ranhuras. Olha a palma da mão que a cigana não quis ver.

Qual será o sijo de hoje?
Adentrar a máquina em passo delicado,
Engrenagens oleosas e macias fazem derreter o aço
E evaporar em púrpura - alma tecnológica redentora.

Por que parece ser tudo igual de novo? Estar no frisson da paixão como na pista de patinação, em vez de manter uma relação belamente construída no armário embutido?

Qual será o sijo de hoje?

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Brasília Litania Beat

Brasília eu ando meio triste com você. Brasília eu ando pela w3 com suas lojas decadentes, e não encontro mais o que olhar. Brasília teu espaço te condena a ter grades. Brasília liberta tuas calçadas e jardins! E libera o grafite. Que a w3 seja uma galeria imensa e aberta, um grande Espaço Renato Russo.
Brasília eu não quero ter carro, eu não quero pegar sinal, nem passar por pardal. Brasília pára de me mandar boleto de multa!
Brasília quero ver tesourinha pela janela e fazer tesourinha, Brasília teu cheiro é de terra vermelha e obra suspeita, onde tá o ipê amarelo da 714?
Brasília minha barba machuca a pele do meu amor por você. Vou raspar, mas nem sei se vou. Brasília um cara de boné me disse que não tem dinheiro pra voltar pro Goiás e tá na casa de um parente em Águas Lindas. Brasília e suas novas satélites barbarizadas. Brasília apartheid do espaço da grana. Muita grama por aqui e pouca grana pra lá. Brasília respeita os candangos e os novos. Brasília o nordeste também é aqui. Brasília meu pé dói no calcanhar e não consigo chegar ao Conic caminhando.
Brasília o cara disse que a igreja vai ajudar e que deus abeçoe. Brasília o teu deus foi erguido por um trator e endurecido no cimento. Brasília JK não te deixa viver, vamos fazer uma reza pra ele parar de nos assombrar. Brasília planta uma árvore na praça do museu e convida a gente para passear. Quero sentar à sombra de um ipê e olhar o horizonte. Chega de concreto armado, Niemeyer. Brasília vamos armar outra coisa.
Brasília deixa a gente olhar o céu de noite na Esplanada. Brasília suas superquadras são ótimas pra olhar o futuro e não ver nada. Ainda bem que posso fumar um na grama da 107. Brasília cadê as ciclovias? Pedalo suas retas na noite do meu infortúnio e encontro um cara que me convida a uma festa. Brasília tem gente muito louca fazendo dança indiana e tomando chá nas mansões do Lago. O cara com um olho azul e outro castanho disse que vai pra Chapada pro ritual da lua. Brasília vamos pra São Jorge curar nossas mágoas e as dores do mundo enquanto desce um disco?
Brasília eu navego em tuas águas paranoás, deslizando a barca de Creonte. Empurro gôndolas mortuárias e enxergo tumbas na beira do lago. É neste lago que chamo as almas para voltar ao outro mundo. Há um portal na Ermida Dom Bosco. Pra lá seguem os que desistiram de encontrar razão pra isso tudo. (depois de procurarem em computadores do ministério da indiferença programada).
Brasília falei com um camarada de escola no twiter que não sai mais de casa e coleciona estátuas do Dois Candangos. Tem dois carros apodrecendo na garagem. E vários ternos puídos no armário. Brasília a menina que eu amo já não mora mais aqui e já não quero amá-la. Brasília eu cansei de calotar ônibus e pichar banheiro, nonsense de boy.
Brasília teu punk rock toca em boate de playboy. Brasília assassinaram, a facadas, um casal e a empregada no sexto andar. Brasília a gangue amarela usou o Orkut para marcar porrada no parque contra a gangue vermelha. Brasília pede uma massagem tailandesa, bebe um bálsamo de flores do cerrado e dissolve essa raiva contida. Brasília pode chorar. Brasília vem me dar um abraço. Brasília ainda posso andar por debaixo dos blocos e passar a mão nos pilotis?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A história do bailarino

(Ventava e ainda havia restos de lixo espalhados pelo chão onde alguns cachorros se refestelavam. Pedaços de papel e sacos plásticos voavam como pipas. As folhas do outono se acumulavam em montes varridos durante a madrugada. A freada de um caminhão de lixo se fez ouvir perto do teatro, disparando o latido dos cachorros. Ao fechar a porta dos fundos do teatro atrás de si, o prazer do ar quente agitou o sangue que pulsava pela face e acalmou o lacrimejar causado pelo vento frio).

Quero contar a história do bailarino que se jogou da galeria do Teatro Municipal.
Quero contar a história de um amor que começou atrás das coxias, mas depois de um tempo escancarava-se a qualquer platéia. De um beijo que durou a eternidade de um átimo de segundo; e depois, durou a eternidade de um longuíssimo pas-de-deux enquanto a cortina não abria. De um bailarino que até então não havia chegado perto de outro e que estava cansado de ser empurrado para braços femininos alheios. Ali, atrás de cordas e roldanas, de maquinários engraxados, de desvãos misteriosos e escadas estreitas, o amor pôde acontecer.
Quero contar a história do bailarino que, antes de se jogar da galeria do Teatro Municipal, descobriu o amor em alongamentos infinitos de preparação corporal. De um amor que foi se fazendo aos poucos entre bailados clássicos e populares, minuetos e mazurcas, sapatilhas e tornozeleiras sujas de talco.
Quando começou, o breu e o odor de fungos dos corredores causavam náuseas aos bailarinos. Maquiadores, montadores e figurinistas andavam com remédios de pingar às narinas durante montagens que podiam virar a madrugada. Quando o amor vislumbrou a aurora da possibilidade, num dia em que tudo parecia quieto e menos insuportável dentro dos camarins, um beijo roubado, um simples beijo roubado durante um segundo de distração, num momento de concentração solitária, fora de qualquer senso de espaço porque o beijo houve como se não houvera ocorrido; e não tivesse como, nem onde, nem quando daquilo ocorrer - e disparou o relógio do resto de uma vida.
Quero contar a história da busca desenfreada pelo autor do furto. Um roubo que se transformou em troféu, depois, em razão de existir e no leit motiv de uma ópera particular. Mesmo não havendo evidência, o autor já havia sido eleito. O culpado havia sido apontado como o outro elo de uma flechada de cupido. A flecha de um cupido meio torto zumbiu. Um cupido que tentara colorir o destino com cores barrocas, de sutis claros e escuros que inundavam os corredores do teatro e a mente turvada de um bailarino apaixonado.
Em meio a isso tudo, quero avisar da existência uma “preferida”. E a preferida era muito amiga daquele que tinha o nome escrito na flecha disparada na câmara de ensaio às escuras. Evento que ficou marcado a ferro e fogo como o beijo roubado misterioso. Ela, a preferida, gostava de trocar músicas no ipod e filmes em DVD com os bailarinos. Costumava trazer misturas de granolas super-energizadas e fazia um esforço visível para ser simpática com todos, mas a comunicação e o trato com aquele que era “a fonte do amor” acontecia de forma naturalíssima. Neste triângulo, a ponta de ângulo menor, onde se encontrava o bailarino de quem fora furtado o beijo, acenava a quiilômetros de distância os outros dois. E, apesar de tudo, aquele que sofria as dores do coração encheu-se de carinho pela preferida do seu grande amor.
Quero contar a história do dia em que não podendo mais suportar a distância, encurtou o caminho em direção à preferida e se apresentou. Depois de elogiar o tecido da saia e o rigor nos laços da sapatilha dela, perguntou se não poderia assistir ao ensaio dela e do seu “amigo” um dia, já que ele próprio ensaiava em outro horário. Ela disse “claro” e convidou-o para um café. Naquele mesmo dia, ele pôde jurar a si mesmo que descobriria tudo, pois perguntaria a ela e mesmo não perguntando a faria confessar o crime do beijo roubado. Rodeou-a de perguntas e comentários imprecisos que fizeram a preferida dar uma desculpa qualquer e ir embora. Nos outros dias ela começou a evitá-lo educadamente. Depois, nem mesmo o cumprimentava. E um ouriço negro começou a nascer dentro do seu peito.
Quero contar a história de alvoreceres angustiados na porta do teatro a espreitar a chegada dos bailarinos. De ensaios catatônicos e coreografias insossas. A história de um ouriço que cresceu espetando seu coração até o dia em que de olhos bem fechados, no mesmo local de ensaio escuro, recebeu outro beijo.
Aí foi quando uma luz branca se ascendeu nos seus olhos.
Quero contar a história do bailarino que não podendo mais controlar seus movimentos, tateou desesperadamente o ar e finalmente encontrou as mãos mais macias e fortes do mundo. Esforçou-se para ver e viu, mediante cores mais vivas e menos nítidas, o contorno dos braços, dos ombros, do pescoço, do queixo proeminente e dos lábios roxos que o haviam tocado. Sentiu o cheiro doce do suor e o hálito quente se esparramando pelo seu corpo e deixou-se tomar por inteiro daquele momento.
Quero contar a história do bailarino que, sem nunca antes ter recebido um beijo verdadeiro, apenas cumprimentos frios e carinhos furtivos de parentes distantes e pais de criação, acordou numa banheira de lembranças inesquecíveis. E a cada dia, lembrado-se menos do que havia experimentado da frieza do mundo ao seu redor, só tinha olhos para dentro de si, onde um mundo novo se revelou. Um mundo de toques inesperados, beijos roubados em quartos pequenos ou mesmo no meio de um ensaio cheio de gente, além de olhares tão discretos quanto imperceptíveis para qualquer um que não fosse ele mesmo. A primeira vez que decidiu fechar os olhos atrás das cortinas do teatro, conseguiu ver melhor porque de repente todo seu corpo foi capaz de enxergar, com mil olhos, uma enchente de afeto. Já não era preciso subterfúgios, discrição, ponderação. A qualquer hora, depois que chegava ao teatro, os encontros se sucediam e já não se lembrava como tinha chegado, e nem a que horas tinha saído no dia anterior. O tempo presente ocupava com tanta intensidade sua existência que já não sabia direito o que tinha feito, nem quem havia sido antes de entrar no teatro.
Quero contar a história do bailarino que decidiu um dia não ir mais embora e passou a noite dentro do teatro vazio, na sala de ensaio escura, em meio à pletora de carinho e afeto que ele produzia como uma usina solitária. Já não se comunicava com mais ninguém. Passou a ter dificuldades de distinguir os rostos dos outros bailarinos e, antes de conseguir reconhecer apenas o seu amor, ainda pôde chegar perto da “preferida” para perguntar o que ela achava daquilo tudo.
Quero contar a história do bailarino que não entendeu por que a “preferida” resolveu enterrar uma estaca em seu coração. Por que ela, uma semana depois daquele café, na semana durante a qual todo o amor do mundo parecia pingar das paredes do teatro, se afastou depois de dizer “repare bem” e caminhou em direção à fonte de todo amor para beijá-lo longamente na boca.
Aí já era tudo fumaça e tontura.
Quero contar a história do bailarino que cambaleou pelos corredores do teatro sem controle das próprias pernas. Que decidiu subir ao local mais alto, à galeria. Que não via direito por onde ia, mas pôde lembrar, durante o caminho para as galerias, esbarrando em cordas e vasos caros, de lugares escondidos onde o amor aconteceu. Lembrou, durante o caminho, de sua vida opaca antes do beijo roubado, lembrou, com os olhos anuviados, como fôra duro seu percurso para chegar até o teatro, para conseguir se tornar um bailarino, para aprender a dançar e a viver sem ter conhecido o amor, o único, que se revelou há apenas uma semana. Voltou a sentir os efeitos dos fungos que habitavam o interior do teatro e começou a ter dificuldades de respirar. Percebeu a temperatura do corpo subir e a visão escurecer mas conseguiu subir as escadas arredondadas que levavam à galeria.
Quero contar a história do bailarino que viu o tempo congelar e flutuou. Do instante em que viu o filme da sua vida inteira passar enquanto sentia o frio correr pela espinha. Do ouriço que havia rasgado seu coração e o impedido de tocar o seu amor. Do beijo roubado e do amor arrancado.

(O peso do ar dentro do teatro aumentou a ponto de as lâmpadas se apagarem sozinhas. Algumas estouraram e alguns pipocos podiam ser ouvidos de quando em quando. Um besouro cruzou o palco e foi cair de pernas para o ar sobre o sangue espesso que ficou empoçado na última fileira da platéia).

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Primeiro movimento

Uma nota aguda.

Posso te dizer alguma coisa sobre o começo dessa obra? Normalmente uma obra musical nasce dos sons graves, que remetem ao chão, à base, aos pés, a algo que nasce e depois cresce. No entanto, esta sonata surge de um zumbido do vento, um chamado do céu, do além, de algo que já existe, de um som que vem de muito longe, de um som que atravessou o tempo e persiste nesta vibração alta e suave. Entendeu? Bom, toca.

A nota aguda e uma frase doce começando com um lá.

O lá tem esse papel iniciativo, definidor de afinação, do registro médio, do caminho do meio, percebe? É ele, o lá, que vai te conduzir ao evento que se desenrola ao longe. A frase em cantábile deve soar como um assovio melancólico, e não como o início de um drama. Fecha os olhos e imagina um deserto com areia branca, um vento vindo do infinito, a areia movendo a topografia e você... você sozinho esperando algo ou alguém.

A frase cantábile e novamente a nota aguda longa. Silêncio.

Isso. Mais silêncio, mais imobilidade, menos respiração, se possível. Isso foi só o começo. É do nada que essa história vem chegando pra você.

Como um ruído, uma progressão de sons médios e, de repente, três acordes dissonantes em fortíssimo.

Pronto, agora você não está mais sozinho, a partir de agora a força da natureza anuncia sua presença nessa trindade sonora. Trombetas, sinos, relâmpagos, o que você quiser. Tem algo que está para acontecer, ou para chegar.

A mesma frase cantábile agora com caráter resoluto, decidido.

Você pode ver? Abra mais os olhos... ou os feche totalmente pra poder escutar com máxima acuidade. Cada nota com nitidez. Isso que você vê ou escuta é forte, é grande, e te toma por inteiro. Da ponta dos pés até o cabelo. A incerteza acabou. A noite é clara, e a música emite sua própria luz ofuscante. Não é mais uma questão de defesa ou ataque, você tem domínio da situação e conduz essa história. Não existe mais o fora ou o dentro, é você que finalmente se toma por inteiro e se torna alguém. Vamos, toca e me diz quem você é. Toca.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A praça

Todo o tempo que eu tivesse teria que fluir como um vento tranqüilo, mas rápido. Eu desci as escadas do hotel pulando os degraus e saí na praça, onde um rebuliço tomava as mesas espalhadas em frente aos cafés. Gente andando, gente sentada bebendo, rindo, falando alto. Vesti o casaco que trazia amarrado na cintura e medi o espaço atentamente. Vou sair por aquele arco à direita que dá para a avenida do shopping. Mas antes vou passar pelo café onde estão todos os músicos, já vestidos em seus smokings e longos pretos, com instrumentos a tiracolo esperando a hora de entrar no teatro ao lado. O teatro ao lado do hotel. O hotel, o teatro Sta. Cecília, a padroeira, a nos esperar. O teatro, o hotel e os cafés num quadrilátero neoclássico.
Diante do café, de costas para os músicos, um bicicletário. De bike vai ser mais rápido até o shopping. Uma flautista me tirou do transe momentâneo diante das biciletas. Ela usava um cachecol que enganchou na minha barba quando beijei seu rosto. Seu sorriso triste me deu vontade de ficar pra conversar, mas zarpei. Despedi-me de todos rapidamente e corri pro shopping.
Um mar de gente de casacos andava na contracorrente, o vento também. Decidi correr pra compensar o vento que me jogava pra trás. Apenas as maçãs do rosto estavam geladas. Meus olhos lacrimejaram de frio. Venci a distância até o shopping e adentrei a porta giratória. Era um desses shoppings que imitavam uma mini-cidade. Dentro e fora dele, a sensação era de estar fora, sempre fora. Caminhei rapidamente por lojas e quiosques, onde já não havia muita gente pra cruzar. Entrei numa loja na seção de alimentação, numa loja de departamento, numa loja muito grande, com uma praça de alimentação dentro da loja. Agora a sensação era de estar dentro, sempre dentro do shopping.
Pronto, agora preciso voltar, o concerto já vai começar. Que horas são? Preciso tomar um café pra me esquentar. A moça do caixa da loja de departamento usava um uniforme igual ao da moça que recebia o convite na entrada do teatro, que tinha o cabelo igual ao da moça que trabalhava na recepção do hotel. Tenho que voltar. O café vai ficar pra outra hora. Os músicos já devem estar se dirigindo pro teatro.
O tempo agora não fluía tão rápido como o vento gelado lá fora. Ainda tinha que pegar o violino no hotel e me vestir. Depois que atravessei a porta giratória e me vi na avenida, achei que havia mais gente na rua. Perguntei as horas pra um mendigo sentado que pareceu não compreender o que eu estava dizendo. Havia realmente mais gente na rua. Deveria correr, sentia as pernas densas como um rio depois da chuva. Todas aquelas pessoas estavam indo na mesma direção que eu. Pedi passagem entre elas, mas parecia uma fila de entrada em trem de metrô. Congestionamento na entrada da praça. Tem que haver outro arco de entrada do outro lado. Permaneci teso em meio ao mar de casacos escuros. Respirei fundo pra forçar uma resignação, como única forma de ser.
Já não havia mais quase ninguém sentado nas mesinhas dos cafés. Poucas luzes acesas nos cafés. Muitas luzes vindas do teatro apinhado de gente. Venci a resistência, no saguão do hotel, sorri pra a moça da recepção e subi as escadas. Não tinha mais ninguém no hotel. Agora tinha braços e pernas engessados de uma falta de fluidez abissal. O tempo estava rijo. Com dificuldade, tirei o smoking do armário, olhei meu estojo com o violino sobre a cama. Já devem estar todos prontos pra entrar em palco. E o ar parado dentro do quarto. As cortinas imóveis. A janela anunciando a minha imobilidade. Lá fora, a praça. A praça com os cafés, o teatro, o biciletário e poucas pessoas caminhando. Já não há condições de continuar.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Mais para o escuro

As lembranças me chegam mais para o escuro, com diversas sombras e poucas claridades. Da janela alta vejo a chuva que borra o meu rosto seco. Quando passo os dedos pelo vidro, imagino que, se uma só gota me molhasse, poderia encolher e sumir.
Desde que cheguei, quando o taxi me deixou em frente ao portão de ferro, tenho sentido uma pressão na cabeça. Todas essas pessoas se trombando pelo pátio, que na verdade é uma quadra de basquete, com malas nas mãos, algumas se cumprimentando efusivamente, outras apenas olhando o movimento. Não sei se vou gostar, vou fazer um esforço. Lembrei, desanimado, uma frase de um índio centro-americano “as coisas da vida devem fluir sem esforço”.
Às quatro horas eu tenho que estar em algum lugar no outro prédio, conectado a este em L. Que horas são? Posso ver o pátio dois andares abaixo. É só atravessá-lo, entrar no outro prédio e subir as escadas. Qual andar, qual sala, não sei. Mas os horários das aulas estão afixados nas paredes. Uma senhora de óculos pretos, prestativamente postada detrás de um balcão, sorriu pra mim quando entrei neste edifício. Ela deve saber de tudo. Deveria descer e perguntar a ela.
Lá fora é, parece óbvio, onde eu não estou. Digo isso, porque, não obstante, aqui dentro sinto não pertencer, não dever estar, não querer ficar. Mas não consegui sair até agora. Como rosto borrado e as mãos frias do contato com a janela, tentei chorar. Desisti, a qualquer hora pode chegar alguém aqui.

domingo, 10 de maio de 2009

Uma ponta

O policial que me conduziu à delegacia de Itabirito, um jovem oficial mineiro, não me algemou, não me constrangeu, apenas sugeriu que assinasse uma ficha. Concordei. Dentro do carro, comentou: por mim, legalizava tudo. Cumpriu a lei mesmo não concordando com ela.
A senhora oficial de justiça que me entregou a intimação para comparecer perante o juiz do fórum de Itabirito, veio à minha casa, sentou-se, tomou um café, e, de pernas cruzadas, comentou: isso é uma bobagem, aqui mesmo no parlamento usam-se coisas muito piores. Também cumpriu a lei à revelia de sua concordância.
O juiz determinou o depósito de um salário mínimo na conta de um orfanato da cidade.
Saí de Itabirito meio confuso. Pra quê tudo isso?

Para além de tudo que possa ser dito sobre a erva, essa pantera miúda de cálido tapa, quero liberdade para desfrutá-la. Quero que um frio na espinha me leve ao seu estupor.
E perceber que não sou eu que a seduzo, é ela, minha querida, que me embala.
Trago um pote de esperanças e alegrias que aperto contra o meu peito.
Em verdade, não sou eu que trago, mas é no seu próprio deleite que me vejo flanar.
Sou tragado pelo cachimbo da paz, da alegria, da tristeza e da ironia.
E dançamos uma valsa azul-acinzentada de amor.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

O outro Ganges

Conta a lenda que o rio Ganges tem um rio irmão-gêmeo em outra esfera, em outra dimensão, ou sei lá onde. Pouco se falou sobre ele e quase nada sobre seu leito ou sobre suas águas. A respeito do tal rio, sabia-se que tinha águas caudalosas, compactas e conduzidas como num adágio para cordas. Sobre este outro Ganges, livros foram escritos. O mais velho homem do rio disse ter ouvido falar sobre o misterioso leito, mas ele mesmo é analfabeto e só alega conhecer a linguagem dos pássaros e o pensamento dos peixes. Esse homem velho conta que seu avô ouviu de seu bisavô que, na época em que havia poucas jangadas e portanto pouca gente vivendo sobre suas águas, o rio era quase gelado, por isso o maior perigo era pegar a gripe marrom, apelidada devido à cor da secreção expelida pelo doente. Agora, o velho, que tem que amarrar a barba para trás, já que cortá-la foi proibido pela sua própria lei, cospe de lado e reclama: a água esquentou demais. Diz que os livros, quando existiram, foram queimados no dia seguinte a uma espécie de pororoca que acontecia de cem em cem anos. E dali pra frente, uma maldição teria se abatido sobre quem quer que escrevesse ou falasse sobre o que existia sob aquelas águas. Segundo o ancião, as palavras usadas pra descrever o “além-abaixo-d’água” foram esquecidas, mas uma menina de cinco anos, que nascera com dons advinhatórios, teria vindo ao mundo com a missão de reescrever a história perdida. Centenas de peregrinos, uma vez por ano, caminhavam de jangada em jangada, até a última delas que servia de chão para os que não vivessem a nadar, repetiam a mesma cantilena, aprendida da menina que vivia de olhos fechados e entoava um alaúde melancólico. A canção da menina dizia: “Existe um livro. Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles esteja vivo”. E seguia cantando e tocando seu alaúde.
Assim, mesmo com o mistério atormentando os crentes, como a água tornara-se menos gelada, os banhos eram festejados por todos. As crianças se tornavam desde muito cedo exímias nadadoras e não havia notícia de afogamento, pois, mesmo com profundidade desconhecida, a água era densa, com tantos minerais e sais desconhecidos que era difícil afundar. Beber dela, se podia, mas nunca junto com outra bebida ou comida. Assim, o costume prescrevia um tipo de ritual que era infalivelmente realizado três a quatro vezes por dia. Durante dez minutos, toda vez que alguém sentia sede, a tradição mandava a pessoa necessitada encontrar uma outra, dar as mãos, fechar os olhos e, voltada para a contra-correnteza, ficar imóvel respirando fundo. Só então, tomava a quantidade de água que desejasse.
Como um palco em movimento, um estande do tempo, o rio segue prenhe de histórias.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Dois professores




Em tempos de mares revoltos
Sossego o facho e estico a crina
Com mesmo dedilhado devo subir
Aquela escala ou uma colina?

Em tempos de mares calmos
Escolho a corda e o repertório
Solto o ar e devagar inicio
Um farfalhar quase histórico

Falo de uma correlação
Um mi com lá, um ré sol fá
Relaxa aqui, sem dispersão
Dobra a perna e solta o maxilar

Em tempos de mares vis
Aprumo a lombar, cheiro alecrim
Corto o mato do meu jardim
Flores belas, tudo que sempre quis

Existe som no fim do túnel?
Cabo da tormenta a navegar
Um labirinto de desafios
Dá a mão pra eu atravessar

O amor as vezes é invisível
Ou seria mesmo inaudível
O grito imenso que vem
Um ressoar contido de silêncio zen

Em tempos de mares azuis
Velejo firme, bem à beça
Mantenho tesa a esperança
Arco violinístico da promessa

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Poema pra Priscilla

Ainda que o tempo não faça atalho
Meço os milímetros e segundos cálidos
A ampulheta risonha, miro leve e ávido
- longo caminho sem trégua pra saudade.

Nem uma clareira pro sol entrar
Maçãs caem, desverdeiam no pomar
Como será o meu amor, qual o tamanho e a cor
Mensagens ao vento perdidas têm calor?

Luz é pra ver, não pra cegar
Estendo a mão, alcanço sem tocar
Confusão de cheiros e gostos em devir
Tira-me do penhasco pra eu não cair!

No espelho, quero saber qual boca será a minha
Quero te ver em mim e não morrer à míngua
Te busco de manhã e à tardinha
Meus lábios grandes, meus olhos, minha língua.

Pode alguém mergulhar nos seus olhos?
Ir fundo e querer te olhar dentro do olhar?
Meu sonho, flor do sereno, decanta
Pé no chão, com o céu na terra, levanta.

Relato de viagem

O dia estava ensolarado, ventava pouco, a viagem tinha tudo pra ser linda e eu queria começá-la sem carregar nada nas costas além da minha mochila. Já havia deixado pra trás meu violoncelo e a minha barraca na casa de um amigo dono de pousada. Precisava dizer ao menos que eu não tinha sido raptado nem tomado chá de sumiço. Feito isso, estaria totalmente livre. Eram 9h30 quando entrei numa pequena Internet Café, ao lado da rodoviária de Paraty, ávido por passar uma mensagem pra Lara, minha namorada. Larguei a mochila ao lado da cadeira do computador e encarei a tela em branco.
Dentro do Café podia ver a dança da fumaça cinza-azulada sair de alguns cigarros acesos e sentir, misturado à fumaça, cheiro de fritura vindo de uma pastelaria ao lado. Olhei disfarçadamente para a direita onde uma senhora, com óculos na ponta do nariz, parecia fazer uma consulta de horários de passagem de avião; e à esquerda vi um garoto loiro com roupas de basquete norte-americano jogando um Thunderboard IV. Tudo certo e mais ou menos calmo para um quarteirão de rodoviária.
É só me concentrar e escrever, pensei. Alguns segundos depois, estático, mudaram a minha idéia sobre a extensão do e-mail. Decidi ser curto. Curto, mas delicado. Afinal, eu estava viajando sozinho justamente pra poder pensar. Não dava pra explicar muito. Meu amor, estou em alguma praia perto de Paraty. Preciso de um tempo antes de conversar novamente. Dentro de 4 dias estou de volta. Não se preocupe. Pronto. Enviar. Respirei fundo, aliviado e orgulhoso de mim mesmo. Pensei: Tá vendo como você pode? Não precisa simplesmente sumir do mapa e inventar histórias...
Ainda que essas histórias, na maioria das vezes, afrouxem o nó górdio da situação, a sensação de calhordice fica ardendo no estômago. E aquele era o momento pra dar um tempo de mentirinhas. Mentirinhas, essa era a palavra. Era hora do banho antes da festa, antes de decidir o que fazer. Saí do Café, senti o vento no rosto e perguntei que horas eram.
Às 10h40, apenas algumas nuvens acompanhavam a linha do horizonte e eu estava andando pelo cais, ou pela ponte, como os caiçaras se referem à passarela elevada de madeira que avança da terra sobre o mar, onde os barcos encostam. Fazia uma espécie de pesquisa de preços e horários para a travessia até a praia de Pouso da Cajaíba. O clima era de feira. Turistas e mochileiros zanzando pra cima e pra baixo à procura de passeios e travessias. A idéia era seguir à risca a recomendação de amigos que já haviam feito a trilha Martins de Sá – Sono (que na verdade é uma trilha mais extensa, pois começava em Pouso, passava por Martins de Sá, pelo Sono e terminava em Laranjeiras – praias do litoral sul do Estado do Rio). Ou seja: pegar um barco até Pouso e caminhar a partir de lá. Àquela hora, o sol estava rachando a moleira e mesmo tendo deixado a mochila num quiosque de bebidas e salgados, sentia o suor escorrer pelas costas. Havia embarcações de vários tamanhos, desde pequenas lanchas e canoas até escunas e veleiros de grande porte. A maioria dos barcos, no entanto, era de pescadores já haviam voltado do mar. Os que ainda permaneciam por ali podiam exibir o saldo da pescaria da manhã em pintados, dourados, agulhas, cumbuquinha, pinguili e cherés fresquinhos. O meu humor estava ótimo e não me importei em esperar aparecer um pescador disposto a me levar, por um preço razoável, desde que eu esperasse juntar mais gente para ir no mesmo barco.
Quando voltei pra onde estava minha mochila, alguém me cutucou. Parei de tomar um gole d’água, e vi o sorriso aberto de uma velha amiga que parou diante de mim com os braços abertos. Dei-lhe um abraço apertado e gostei de sentir seu perfume de lavanda em meio aquela maresia e mau cheiro de fim de pescaria. Ela tinha um tererê no cabelo que quase enganchou na haste dos meus óculos quando tentávamos nos desvencilhar do abraço. Constrangida, mas rindo à toa, Andréia (consegui lembrar logo seu nome) apresentou o namorado que vinha logo atrás. Conversamos animadamente e combinamos ir os três no mesmo barco para Pouso.
Aquele encontro casual no porto parecia encomendado já que meu objetivo era pensar bem no que fazer quando voltasse pra casa. Eu a conhecia há alguns anos, e o namorado há bem menos tempo. Depois que nos conhecemos, estabelecemos alguns contatos porque ela é excelente fotógrafa e fez alguns trabalhos para eventos de música em que eu participei. Certa vez, durante uma sessão de fotos rolou um clima, saímos juntos e nos beijamos. Nunca me esqueço da chuva e do pneu furado em plena Avenida Brasil quando fui deixá-la em casa e “ficamos” pela primeira vez. Ela namorava com um grande amigo em comum. Chegamos à casa dela bêbados e mesmo assim ela insistiu em mostrar toda sua discografia de música barroca em vinil sem se importar com o fato de estarmos encharcados. Foi divertido. Ela é esguia, branquela e atraente. Seu único defeito é que fala pelos cotovelos. Não resisti, ouvimos música e dormi por lá. Fiquei doente durante uma semana, mas ela, sentindo-se responsável, cuidou bem de mim, devo confessar. Ficou nisso. Meses mais tarde, ela ligou pra tomarmos um chopp e ficou reclamando do namorado que não gostava de acompanhá-la ao cinema e aos concertos que ela tanto gostava. Eu, que já namorava Lara, aproveitei uma brecha pra botar as coisas em pratos limpos e avisar que estava comprometido. Pra minha surpresa ela exclamou: Ótimo! E propôs sem meias palavras que nos encontrássemos de vez em quando na surdina. Naquele dia rolou. Mas depois ela entendeu que não tinha nada a ver pra mim, pois eu não estava tendo nenhum problema com minha namorada, muito pelo contrário. E, apesar de ela ser uma mulher interessante, não fazia meu estilo encarar uma vida dupla à moda antiga. Amantes... É tentador, mas não combina comigo. Meu ranço cristão acaba me impedindo de ir tão persistentemente neste pecado... Além disso, não dou conta nem de uma, que dirá de duas mulheres.
Foi engraçado lembrar de tudo aquilo subindo a bordo do barquinho que iria me levar a Pouso. Sete turistas estrangeiros se acomodavam perto de mim. Passei um pouco de bloqueador solar e observei o casal amigo discutir sobre alguma coisa que havia esquecido de trazer. O namorado de Andréia era simpático e começou a me explicar quanto tempo havia levado para ficar pronta uma imensa tatuagem que tinha nas costas. Eu fingia escutar, mas na verdade pensava em Lara. O meu drama na relação com ela não passava exatamente pela larga tradição machista de galinhagem, que, aliás, não acho que eu seja exatamente o melhor representante. O problema com Lara era simplesmente encarar a vida de casado. Afinal era disso que se tratava. Posso vê-la pendendo a cabeça para o ombro, levantando a sobrancelha, passando os dois braços ao redor do meu pescoço e me atirando aquela frase como se tivesse perguntando as horas: a gente devia morar junto logo... Assim. Simples e casual como ela gostava de falar quando queria dizer alguma coisa realmente importante. Será que ela falou sério ou estava me testando? Nem de perto, nossa relação estava essa maravilha toda. Namorar já era um desafio. Em diversos momentos me sentia sufocado e sem autonomia. Depois oprimido e angustiado. Mas ao mesmo tempo, consigo lembrar e sentir na pele um começo de namoro cheio de ternura e contentamento. Como é que essas coisas acontecem? É louco, é contraditório, mas é assim que acabo vivendo toda a confusão de estar com alguém. E agora, olhando o mar sendo cortado pelo casco do Água Marinha (nome pintado em letras azuis sob a proa) anunciando uma aventura há muito planejada e adiada, senti um misto de saudade dela, e de satisfação por estar sozinho!
E foi sozinho, mas ao mesmo tempo rodeado de gringos aventureiros que ouvi alguém gritar - golfinhos! Virei e vi um cardume coreografado desses mamíferos acompanhando o barco em alta velocidade. Nem no Globo Repórter aquilo pareceu tão incrível. Quase agradeci a deus ou ao destino, ou à sorte, ou ao quê ou quem fosse responsável por aquilo. Fui brindado pela sorte, concluí.
Ao meu lado uma pequena jovem argentina com lenço nos cabelos cheirava pequenos pedaços de casca de limão. Ela me contou que o cheiro de frutas cítricas, como o limão, funcionava para evitar enjôos. Mas o meu possível enjôo não viria do balanço do mar, nem da cachaça que os gringos me ofereciam e que já passava de mão em mão pelo barco. Viria do contrário daquela realidade virtual que construí – sol, mar, praia, ilha, barco, golfinhos, vento. Meu cenário mais verdadeiro talvez fosse, meu quarto vazio com paredes cinzas, guimbas de cigarro espalhadas pelo chão, uma luminária de luz fria sobre uma mesa de madeira comida pelo tempo, livros espalhados pelo chão, um colchão com uma mancha negra que não saía nem quando lavado ou deixado sob o sol, uma estante de música empenada e o barulho de carros e buzinas misturados com o vento frio que batia nas janelas de vidro. Talvez fosse esse o cenário correto. Mas eu queria fugir. E assim, tracei a minha rota de fuga; primeiro de ônibus até Paraty, depois de barco até a praia de Martins de Sá. Lá não haveria rastro da minha existência. Lá, seria apenas uma nada perdido em um paraíso que eu criaria pra mim mesmo. Um lugar lindo com pessoas lindas, como que me descreveram dois amigos uma vez na porta de um teatro, além de meu irmão que já tinha ido por lá.
Contudo, o fel da angústia turvava meus sentimentos. A sensação real era de covardia. Essa é a palavra. Por que ela não percebe? Por que eu fico falando sozinho pra mim mesmo? Por que as coisas sempre vão chegando a esse nível de insuportabilidade? Por que é que eu tenho que levantar no meio da noite só pra sair do lado dela? Sinto-me um covarde e um traidor por não falar. Por que é tão difícil? Se ela é tão legal, se é uma pessoa tão inteligente e bacana, vai compreender e, sendo otimista, vai até gostar de eu ter sido sincero. Ontem à noite, me deu vontade de chorar na cama ao seu lado. A cabeça dela no meu peito. Ela dormindo. Já estou antecipando o sofrimento na hora de acabar com tudo isso. Vai doer na hora em que eu tiver falando com ela, porque depois, ah... vou sofrer muito, mas vai ter que parar de doer em alguns dias ou algumas semanas. Que angustia... Porra, que medo de enfrentar uma situação que não consigo enxergar outra saída. É o velho medo de magoar o outro. Que merda isso de ficar ruim uma coisa que já foi tão boa.
(A menina argentina ofereceu-me um gole da sua garrafa d’água recostou-se nas mochilas amontoadas para tentar dormir. Pude ver uma ponta do biquíni dela e toda beleza que a partir daí saltou aos meus olhos e se concentrou como um formigamento entre as minhas pernas. Fechei os olhos).
Por que não sinto mais tesão por ela? Por que eu não sinto mais vontade de beijá-la? E será que ela não percebe, porra! Como é que eu vou falar isso com ela? Eu sei, não vai dar pra ser legal com ela e comigo ao mesmo tempo.
Já me bateu até a dúvida: se é assim que vai ser a partir do dia em que eu tiver que me contentar com uma relação sem tesão. Esse dia vai chegar? Será que eu nunca me apaixonei de verdade ou eu não consigo me apaixonar pra manter uma relação por muito tempo? Esse questionamento não vai me levar a lugar nenhum, pois provavelmente não irei aprender a me relacionar de maneira diferente. Ou vou?
Deixa eu lembrar, já rolou por mais de dois anos com outras mulheres. Sinto que fui apaixonado por todas e que simplesmente acabou. Como um fogo que vai apagar, quer queira quer não. É que a gente não sabe e nem pensa sobre isso quando ele, o fogo, começa. Quando começa é uma beleza, só intensidade, curtição, descoberta, vontade de ficar junto. Na verdade a pergunta principal é: por que é tão doloroso quando acaba já que racionalmente eu sei que um dia vai acabar? Sempre vai acabar. Igual morrer.
Eu tenho que ser otimista. Ela vai entender, caralho! Eu não consigo dar um beijo de língua e ela não percebe isso? Não é possível!
Hoje já estive até tentando compreender a perspectiva dela... Talvez ela esteja acostumada a uma relação mais morna e tenha sempre procurado um futuro marido... Mas eu já dei várias dicas de que não acredito em casamento e etc.
Eu me sinto mesmo um covarde, mas, porra, será que ela não podia me dar uma brecha pra que o papo pudesse rolar de maneira que ela não fosse pega de surpresa?
Tive pensando: Eu não entendo terapia de casal. Como é que você reverte a falta de vontade de beijar na boca? Afinal, ela continua sendo uma pessoa super legal. Será que seria legal pedir pra dar um tempo? Existe isso? Dar um tempo...
Eu nunca perdi a vontade de transar com as minhas namoradas anteriores. Na maioria das vezes, o sexo era a única coisa que segurava a relação. E quando penso nelas, me dá saudades - inclusive saudade de transar com elas. Quero dizer, não voltaria a namorá-las, porque já deu o que tinha que dar, mas se rolasse um sexo casual tenho certeza que seria maravilhoso. Agora é o oposto. Ela continua sendo a pessoa interessante que sempre foi, mas não sinto nenhum desejo. Já tive conversando isso com alguns amigos... sem uma resposta de consolo.
Eu tenho mesmo uma tendência a querer me livrar das coisas que não estão sendo agradáveis. É como se a vida pudesse não ter tempo ruim, então, me livrei de cursos, pessoas, trabalho, etc. Não consigo ter esperança de que aquilo que acho ruim, chato, um saco, vá melhorar, a não ser quando sou obrigado a continuar. Será que já consegui fazer alguma coisa por mais de, sei lá, seis, sete anos? Porra! Eu namoro há seis meses! Apenas seis meses.
O agravante também é que ela é super caseira e companheira. A gente dorme junto todo dia praticamente. Sinto-me muito casado. Talvez seja isso que incomode tanto. E se eu pedir pra gente se ver só de vez em quando?... Mas não é isso que eu quero verdadeiramente. Eu quero é estar apaixonado e pleno de tesão por alguém. Isso ainda existe? Claro que sim. Já estive tantas vezes... Às vezes chego a ter dúvidas.
Toda aquela gente no barco se havia desaparecido na névoa que o meu conflito produzia. Perdi o começo de uma piada que um italiano acabara de contar e que fez todo mundo desabar de rir. Perto de uma entrada de mar, havia dois veleiros ancorados e houve uma ligeira confraternização quando um barco igual ao nosso cruzou à distância.
Não demorou muito até chegarmos ao Pouso para desembarcarmos e seguirmos a pé. Andréia e o namorado desceram e me esperavam na praia. O resto do grupo se espalhou pelas barraquinhas ao longo da praia. Fiquei por último no barco e pedi para o barqueiro levar minha mochila pra areia. Só de sunga, saltei do barco e nadei até a areia. A sensação era de conquista. Ao chegar molhado e andar sobre aquela praia linda, cheia de barquinhos e casebres coloridos, fiz um batismo caiçara. Senti-me finalmente em terra brazilis, em praia de mata atlântica intocada, no que ainda resta dela no Brasil.
O resto da história ainda ia ser vivido quando me dei conta de que todo aquele cenário deslumbrante seria palco privilegiado para um dos meus vários dilemas. Como lidar o com a falta de amor? Como enxergar isso e não me sentir esturricado de autocomiseração. Lara merecia uma resposta, uma explicação, uma decisão que eu preparava, que eu gestava durante aqueles momentos. Ali, num espaço privilegiado de interação com a natureza e comigo mesmo eu reuniria forças, sairia do papel de covarde e provaria do amargo encontro com a verdade. Uma verdade misturada de lembranças e sentimentos fortes, com dor e vazio na alma. Quem sou eu? Precisava chegar a uma solução, ainda que provisória. Na minha própria fragilidade, tentava me acercar de novos ares, antigos afetos casuais, desafios físicos na relação com a mata virgem e possíveis descobertas amorosas que me dariam um banho de vida, da mesma vida renovada e alegremente vivida que eu ansiava.
O sol se punha às minhas costas quando comecei a caminhada que me levaria à encantadora praia de Martins de Sá.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Cozinha

Cozinha é onde a gente come. Cozinha é onde a gente conversa.
Mas é também de onde eu ouço a conversa que vem de uma outra cozinha. Quer dizer... de onde ouvi certa vez o casal do apartamento ao lado entrar numa briga que começou com um grito de “eu vou te matar”. Bom, pelo menos, o crime não tinha acontecido e eu achei que ouvindo a conversa poderia evitar a tragédia. Fiquei na espreita.
Abri a geladeira e fechei. Como é forte a luz que vem ali de dentro. Acho que vou fazer um café. Chaleira no fogo. Um cheiro ruim empesteou o ambiente.
“Mentiroso” - outro grito feminino. Barulho de panelas. Resumo da ópera: ele é mentiroso e ela vai matá-lo. Sabe de uma coisa? Eu não vou evitar porra nenhuma. Eles que briguem porque isso não vai dar em nada e eu tô mais é com vontade de ouvir a briga deles por pura curiosidade mesmo. Voyeurismo auditivo. Fofoca, pronto.
Tem alguma coisa podre na geladeira, é óbvio. Vou ter que abrir aqueles potes de comida, vou ter que investigar. Merda, vou dar uma de Sherlock de comida estragada. O queijo não é...
“Vai fazer terapia” – voz masculina. Bom, esse cara eu conheço, já cruzei com ele na escada. Não me parece má pessoa. Tem um Passat preto e gosta de plantas: vive deixando uns vasinhos no jardim do prédio. Terapia... Pelo menos morte não vai ter.
A água ferve e a chaleira apita. Corri pra apagar, não queria acordar minha namorada que estava dormindo. Já era de madrugada. Passei o café no coador. Acho que vou ascender um cigarro pra passar o tempo. Não, que nada. Vou tentar limpar na geladeira que o fedor tá forte. Tomei o café. Abri de novo a geladeira. Puta cheiro.
Silêncio. Acho que fizeram as pazes. Melhor. Casal é assim mesmo. De repente estavam até brincando. Não... mandar fazer terapia é pior que mandar ir a merda. Acho que era sério mesmo.
Resto de macarrão, ta bom. Resto de feijão carreteiro... tá bom mas vou jogar fora. Resto de picles condimentado, isso não estraga. Tem umas folhas ali embaixo...
“Aquele livro era meu” – voz feminina. Eu não conhecia a moça. Estranho não ter cruzado com ela ainda. Mas sei que gosta do Zé Ramalho e do Raul Seixas e os ouve num volume alto, no chuveiro, cantando. Canta relativamente bem, não é das mais desafinadas. Bom, deve ter ciúme dos livros, deve ser fã do Coelho - sei lá. Briga é foda. Começa às vezes por uma besteira, um livro, uma louça suja, um telefonema tarde. Mas também pode ter sido por ciúmes, dinheiro, coisa séria.
Aquele maço de couves no fundo da gaveta. Já era há muito tempo. Tá todo melado. Lixo pra ele. Pronto. Agora o cheiro tem que passar.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Sala

Subi as escadas tropeçando pelos degraus até parar em frente à porta. Dava pra sentir a vibração do som que vinha de dentro do apartamento. Respirei fundo, pra recuperar o ar e me preparar pra seguir em frente. Lembrei de como fazia na borda da piscina, nas aulas de natação. Agora era a hora do mergulho. Meu corpo se retesou pra sentir as condições de temperatura e de pressão. Entrei.
A sala. Meu olhar resistiu à força de atração que vinha de fora, da janela. Segurei a vontade de ir até lá e chequei tudo ao redor. Sabe quando as pupilas se congelam fixando um ponto qualquer e aí você se dá conta que está com olhar estático, mas continua parado? Foi mais ou menos assim que vi algumas formigas caminharem sobre a mesa. Ouvi a balada da Nora Jones e achei tinha uma relação entre o som e as formigas. Saí do transe do olhar fixo para voltar as costas para janela. "Espera... que eu já vou, espera que os olhos na minha nuca vão tomar conta da janela, que aquela claridade não vai me cegar enquanto eu estiver de costas".
Aí vi a estante. Tinha uns dois metros por 80 de largura, madeira escura maciça, cinco prateleiras dispostas irregularmente. Diante dela, eu ficava no meio do caminho pra a janela, no meio da sala. Fechei os olhos, a canção dizia "come away with me, let everything drop from your hands" . Fechei e abri as mãos rapidamente. De olhos fechados, a escuridão só veio muito tempo depois, e ao abri-los, a luz esverdeada da janela permaneceu como uma teia sobe os livros. Da prateleira de baixo, um cheiro de mofo confirmava infiltração da parede. Aquilo me agoniava.
A janela. Meia volta e minhas duas mãos apoiadas no parapeito da janela. Meia dúzia de árvores altas e um jardim bem cuidado logo abaixo. Olhos fechados de novo, como num ditado melódico: quatro pios de pássaros compunham a nova trilha. Cabeça pra fora e um céu de nuvens escuras no alto. Uma, duas, três,... sete árvores e meus braços estendidos para alcançá-las.Virei-me, cinco prateleiras lotadas de livros. A música parou e as formigas continuaram dançando. Seriam as testemunhas. Com as mãos inchadas e dormentes, tentei estalar os dedos, sem sucesso. Corri e apanhei dois livros de arte, desses com pintores famosos, e mais quatro de paisagismo. Livros grandes são ótimos pra começar.
Olhei pra janela e joguei-os com toda força. O inchaço das mãos melhorou e ganhei mais coragem: eu ia e vinha correndo, ofegante, da janela para a estante, da estante para a janela, fazendo os arremessos. Ia, pegava, vinha, jogava e ia de novo. Foi uma revoada de páginas pela sala e da janela pra fora. Um farfalhar de páginas ao léu. (Acabei desenvolvendo três tipos de arremessos: à distância, com toda força; em espiral, para vê-los rodopiarem; e em queda livre, simplesmente soltando-os). Os livros menores eu os jogava mais longe. Literatura americana, inglesa, francesa, livros de história, de teoria musical, de psicanálise ganharam liberdade; antes tarde do que nunca. Todas aquelas palavras, todas aquelas frases soltas no ar, plainando em seus livros alados. "Voem, encontrem seus destinos, sejam lá quais forem". Durou pouco, a estante era pequena. Tive o cuidado de não deixar um único livro.
Pronto, já foram. Paz restabelecida. Aliviado, ascendi um cigarro.

Quarto

Quando eu a conheci num corredor de faculdade, tudo que imaginei foi o dia em que ela entraria no meu quarto. Sentado na cama sobre o edredom bege quadriculado, esperando a campainha tocar, mais uma vez:
1. Ela vai chegar e vai querer colocar a bolsa em cima da mesa, e dar aquela espreguiçada virando todo o corpo pra trás. Aí vai perguntar o que eu estou pensando, e vai soltar o cabelo. Eu não vou dizer nada e continuar olhando fixamente pra boca dela que é a parte dela que eu mais gosto. Ela vai querer me mostrar alguma linha de contrabaixo que ela anda compondo, só pra dar a impressão que nem tá tão afim, que por sua vez é pra dar a chance de eu tomar a iniciativa. Vai ligar o ipod e sentar ao meu lado encostando todo o lado da sua perna na minha. Vou perguntar se ela não quer que eu feche a porta e ela vai dizer que sim e vai sugerir que eu apague luz. Quando eu levantar pra fechar a porta, vou ascender o abajur e abrir a janela, tá quente, não ta? Ela, parada vai continuar olhando pro ipode e responder unrhumm, balançando a cabeça. Eu vou beijar levemente a nuca dela, ela vai olhar pra mim. Eu vou olhar bem dentro de cada íris, de cada pupila dilatada e me perder dentro daquele mar insondável.
2. Ela vai chegar e colocar a mochila em cima da cama enquanto ascende um cigarro.
Eu vou apanhar o cinzeiro e abrir apenas uma fresta da janela - faz frio, venta.
“Acho que vai chover...” vai comentar sem olhar pra mim.
Detesto quando ela ascende o cigarro dentro do quarto.
“Sabe aquela música do Blur que eu tô tirando no baixo?”
“Não”. A fumaça azulada vai vir em minha direção.
“Ajuda a tirar minha bota?”
“Ajudo. Mas primeiro tira elas de cima da cama”.
Ela vai olhar pra mim séria, obediente. Eu vou desamarrar os cordões da bota pacientemente. Ela vai me contar como é que foi mal atendida no banco. Eu vou soprar a fumaça pra longe de mim e abrir um pouco mais a janela. Ela vai descrever como brigou com um cara no trânsito, como saiu do carro e botou o dedo na cara dele, não viu meu carro não?
“Me dá o outro pé”.
“Filho da puta, ainda ficou dizendo que eu tava nervozinha”.
Eu detesto quando ela fica nervozinha e aperta o lábio.
Vai olhar pro teto, estalar os dedos e dar aquela espreguiçada pra trás com os pés no meu colo.
“Tua meia tá molhada”.
Ela vai tirar os pés do meu colo.
Vou olhar pra janela. “Não vai chover “.
“Unrhumm”, ela, de olhos fechados.
Eu de pé: “Vou dar uma saída”.
“Tá.” E vai ligar a televisão.

3. O tempo vai passar e a campainha não vai tocar.

lamber os beiços

Todo o meu penar foi de lamber os beiços, lamber a pena úmida que vinha de mim, querência de saber o porquê de tudo, por que essa corda solta no meu violão?
Todo o meu lamber foi de uma pena danada, pena da danada que me molhava a boca, gota salgada do despejo súbito, casa caída no meu coração.
Todo o meu sofrer foi de cuspir na cara, cuspir na minha culpa por não ter amado, não ser culpado por algum desgosto, um gosto amargo pra minha canção.