terça-feira, 26 de outubro de 2010

Dança

Enquanto dava as três voltas em torno da árvore
Muitas folhas caíram ao meu próprio outono
Retorci a lembrança rarefeita do tempo findo
E, de repente, sem que pudesse evitar, raízes e cascas soltaram-se das minhas canelas.
Eram coisas assim, meio empoeiradas, quase invisíveis
Um farfalhar de nada no chão,
Qual enceradeira a embaralhar os dedos dos pés.

Depois, cessou o rodopio e ouvi um chistoso piar do alto
Um rouxinol a indagar por que tanto movimento
E a árvore parada a me negar, solene, a oportunidade da contradança

Atento ao vento que finalmente se espalhava
Entre rodopios de cima-baixo, direita-esquerda
Pedi que tantas pernas e braços se organizassem
Pra eu me achar naquele estranho reboleio
Pra eu me agarrar a um gesto qualquer
Que mesmo contorcido e um tanto controverso
Possa me dizer do ritmo e qual direção tomar,
Minimamente, mesmo a guisa de improvisação
(eu que não sei dançar, eu que não sei falar)
Finalmente, convidar tal jardim imenso pra dançar

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Eu

Eu, somente eu, e a injustiça, vamos caminhando entre brigas e carícias pelas sendas profundas do viver. Quanto mais a rechaço, mas a tenho no laço, mas a tenho em mim, mais a engulo com engulho. Um sem mastigar anfíbio, entre o seco e o molhado a me espinhar a espinha. Um peso que me dobra a coluna a estirar minha covardia. Um doce que amarga a boca e me coloca em saia justa. Quem sou eu perante o mundo? E que mundo é esse diante de mim?

Eu, somente eu, perante a vida. Tenho pena dos anos que deixei escorregar pelos meus dedos, e acho que não vivi. Outros que me orgulho de ter vivido. Cada minuto de cada hora de cada dia de cada mês. Cadê o tempo que passou? E quem é esse Tempo imenso que tenho diante de mim? Quem és Tu que me desafia a desfrutá-lo sem poder tocá-lo? Deus sem autoridade, pois não fui eu quem o criou.

Eu, somente eu, e o amor. Fruta doce e macia. Querência simples, mas tão dolorosa que se instala como um tumor. Se eu não tivesse tantas ganas de amar, faria da vida um simples desenho e deixava que colorissem. Será que o amor é tão necessário ou é uma neblina a me cegar a definição, o contorno firme da ação. Se vou viver e tenho que amar, estou preso na minha não-solidão.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

À mesa

Par delicatesse j'ai perdu ma vie" (Rimbaud)

Pôs-se à mesa da sala
a toalha e a comida
o descanso e os pratos
no sal a própria vida

quem quiser que se cale
mudez real escarnecida
mais vale a pausa musical
que esperar pela oitiva

em cada colher servida
ato pensado e refeito
em quantidade medida
a cada um o de direito

ficou decretada em lei
a sobra está proibida
mesmo se carne moída
melhor fingir que gostei

sorriso crispado no chão
ouvidos atentos ao sino
quem sabe todo o corão
ou de cor aquele hino

se o dever tá correto
bom pra quem o refez
mas se a nota foi ruim
vai ser o castigo da vez

sapato roto e surrado
meia encardida ou perdida
pode esperar que a chinela
vai doer bastante (a maldita)

só não entendo por quê
a luz do quarto acesa
lá dentro a gritaria
Da infantaria avessa

brigam e depois desbrigam
acabam sempre se aturando
do nosso lado o rigor
vai aos poucos aumentando

(na mesa o discurso reto
no rosto a natureza morta
no sopro o cheiro azedo
no pranto a vida torta)

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Balada

Pode vir que eu ainda estou verde
Pode cair que eu não levanto fácil
Pode fechar que já está destrancado
Quem sabe da sombra do pé de carambola
Que refrescou o suco amarelo na calçada
Sobre a qual bicicletas com rodinhas deixaram de ziguezaguear
Quem sabe do vento que bateu na moleira
No final da tarde de junho sob o poste de luz
Virado pro gramado do campinho de futebol
Que servia de arraial das festas de santo
Quem sentiu o frio que entrava pelas venezianas
E congelava o acordar pra ir à escola
Que de casa ficava a uns cinco minutos correndo
Antes que o sinal terminasse de bater pela terceira vez
Pode deixar que eu não vejo
Pode soprar que não termina de doer
Pode moer que se esvai em sangue
Quem pode me dizer das conversas em família
Do terror doméstico pra manter o pátrio poder
Uma brincadeira de mau agouro a destoar do azul
Um vermelho estragado pra não refletir a paz
Um azedume pra cheirar apenas do lado de dentro
Quem sabe eu não tivesse visto tudo isso
Quem sabe dos amigos que estão lá fora me esperando
Quem sabe da turma da quadra vizinha atiçando a vã valentia
Do cerol que levou a pipa construída com tanto labor
Pode bater que não me movo
Pode falar mal que eu vou te amar
Pode tentar me beijar que eu não tenho pele
Quem pode saber da raiva de ter que ir dormir
Antes do melhor filme do mundo terminar na TV
Porque só as nossas veias sabem do sangue que corre ali
Porque se eu tivesse noção das coisas àquela época
Se eu tivesse o controle motor e emotivo da bordoada
Da louca batida que pega a gente de jeito
Do jeito que a mesma comida que faz mal
Mata a fome e leva a gente pra cama da plenitude
Pode deixar de lado o lado de fora
Pode tentar sentir a alegria do outro
Pode me abandonar no meio do escrutínio
Que eu vou escolher um dos caminhos
E será sempre o certo e o errado
E o certo será quase bom e o errado um tanto ótimo
Que nem sempre a gente consegue dizer tudo aquilo que devia
E quem quer dizer tudo acaba não tendo o que dizer a si próprio
Mas tá tudo bem embaçado aqui
E quase tão nítido que sinto minhas mãos tremerem com o pulso
Num ritmo preciso e retido no tempo
E tudo isso já basta

domingo, 16 de maio de 2010

Descafeinada

Cadê a moça do cafezinho?
Não veio hoje
Pronto. Acabou o meu dia.

Ela não podia me faltar
Tem gente que não mede o estrago que pode fazer
Numa tarde insípida e descafeinada

Secura

Na calçada quente dos arredores da rodoviária havia uma névoa de brancura seca. Uma nódoa esturricada no ar empurrava o céu pra baixo, em direção à calçada quente dos arredores da rodoviária.
Era possível chorar pra dentro? Provavelmente, mas faltava a ardência no peito pra ser choro. Faltava o desespero e a dor. Faltava querer abrir a boca e, arfando, franzir a face. E soluçar alguma pedra invisível goela a fora. A boca seca como um papel em branco. A língua como um cacto machucando as bordas internas da bochecha.
Era possível chorar pra dentro? Só se não existisse aquele ônibus das sete de manhã. Se o sol não o houvesse decepcionado ao se obscurecer... Todo o cinza caído sobre sua alma de pedestre sonolento. Todo o céu espiando o vai e vem proletário. Formigas seguindo o caminho das outras. Visão etérea e espectral da urbe infinita.
A calçada inflamável ardia uma camada embaçada na superfície. Um vulto chacoalhou seu abdômen enquanto tentava tirar uma remela do olho. Uma lágrima solidificada na poeira do asfalto. “Chega de tentar chorar porque não adianta pra nada”. Foi o que se ouviu dizer, mas... Como teria adivinhado a dificuldade de exprimir aquela regurgitação subjetiva: uma pedra que permanece enterrada numa lagoa escura de fel. Mesmo que descesse as escadas, trôpego de culpa e embriaguês, ainda assim, a plataforma da rodoviária não giraria o relógio ao contrário.
A calçada tá muito quente, disse pra si mesmo, retirando a mão do chão e protegendo o tronco com o cotovelo e o braço. A camisa escaldante de suor. Uma luz branca e forte e depois um pretume tingido de azul e roxo mancharam a visão e logo não podia mais enxergar nada.
A calçada tá muito quente, foi a última coisa que se lembra ter dito.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Minotauro Sono

Do ronco tímido quase sonho sono de vaga-lume
Um risco lento e depois intenso de prazer (saindo)
Do olho vermelho piscando inerte pra quedar dormindo
Em viela suja de emaranhada lã a tecer o olvido
Truncada rota, arrisca perder-se em tantas quinas
No labirinto grego de um cabeça-tronco, homem-bovino
A guardar a jóia - rara jóia brilhante de um amor infindo

Mas que noite é essa que agita a lama dessa alma cinza
Essa terra borra de café dormido que adormece o fígado
Num navio fantasma de rota anunciada a levar consigo
Urros de tormento contrito a transbordar pra dentro
(Dentro de um óleo fino)

O trincar de copos qual torre sagrada a cantar anuncia
Palavras ao vento sopradas atrás de si - triste melodia
Um andar aflito em choroso penar - bem escondido
Rente ao muro, o dia, amarelecendo vãos escuros

E anda a besta perdida em mágico labirinto
Do amor levando o fio cada dia mais longo
Em infinita mobilidade e preguiçosa constância
Guarda a nata da dor em seu coração maldito

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Finda

Finda é a aurora de um dia mal nascido
qual o berço de ouro de um bezerro louco
que faz levantar a manhã de um sono agitado
num mar de espinhos profundo e tosco

talvez o sol possa se afastar até morrer
no infinito silente de um vazio calcário
morrer, sim, mas com tranquilidade ainda
assim, o "nada" tenha mais de um donatário

mas se recolhe a mão do ato impensado
membros trêmulos de covardia vil
um assassinato etéreo e colossal
a riscar de sangue o céu em pleno abril

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

2 de fevereiro

O doiá! Minha mãe do mar vem me abraçar!
Navego em tuas águas translúcidas, de azul cristal no sal da vida
Dádiva da fertilidade, fecunda a esperança no alimento
O peixe que virá, a festa que a ti se fará
Vinda do rio com teu nome
Seiva do sangue negro Egbá
Refresca o suor do teu povo no balanço do teu abebê
Mão na testa, ao alto e ondulando como dentro d´água
Minha dança é o movimento da tua alma líquida
Nem sereia, nem Iára, tu és a rainha do mar
E a luz do meu cantar