domingo, 15 de fevereiro de 2009

Poema pra Priscilla

Ainda que o tempo não faça atalho
Meço os milímetros e segundos cálidos
A ampulheta risonha, miro leve e ávido
- longo caminho sem trégua pra saudade.

Nem uma clareira pro sol entrar
Maçãs caem, desverdeiam no pomar
Como será o meu amor, qual o tamanho e a cor
Mensagens ao vento perdidas têm calor?

Luz é pra ver, não pra cegar
Estendo a mão, alcanço sem tocar
Confusão de cheiros e gostos em devir
Tira-me do penhasco pra eu não cair!

No espelho, quero saber qual boca será a minha
Quero te ver em mim e não morrer à míngua
Te busco de manhã e à tardinha
Meus lábios grandes, meus olhos, minha língua.

Pode alguém mergulhar nos seus olhos?
Ir fundo e querer te olhar dentro do olhar?
Meu sonho, flor do sereno, decanta
Pé no chão, com o céu na terra, levanta.

Relato de viagem

O dia estava ensolarado, ventava pouco, a viagem tinha tudo pra ser linda e eu queria começá-la sem carregar nada nas costas além da minha mochila. Já havia deixado pra trás meu violoncelo e a minha barraca na casa de um amigo dono de pousada. Precisava dizer ao menos que eu não tinha sido raptado nem tomado chá de sumiço. Feito isso, estaria totalmente livre. Eram 9h30 quando entrei numa pequena Internet Café, ao lado da rodoviária de Paraty, ávido por passar uma mensagem pra Lara, minha namorada. Larguei a mochila ao lado da cadeira do computador e encarei a tela em branco.
Dentro do Café podia ver a dança da fumaça cinza-azulada sair de alguns cigarros acesos e sentir, misturado à fumaça, cheiro de fritura vindo de uma pastelaria ao lado. Olhei disfarçadamente para a direita onde uma senhora, com óculos na ponta do nariz, parecia fazer uma consulta de horários de passagem de avião; e à esquerda vi um garoto loiro com roupas de basquete norte-americano jogando um Thunderboard IV. Tudo certo e mais ou menos calmo para um quarteirão de rodoviária.
É só me concentrar e escrever, pensei. Alguns segundos depois, estático, mudaram a minha idéia sobre a extensão do e-mail. Decidi ser curto. Curto, mas delicado. Afinal, eu estava viajando sozinho justamente pra poder pensar. Não dava pra explicar muito. Meu amor, estou em alguma praia perto de Paraty. Preciso de um tempo antes de conversar novamente. Dentro de 4 dias estou de volta. Não se preocupe. Pronto. Enviar. Respirei fundo, aliviado e orgulhoso de mim mesmo. Pensei: Tá vendo como você pode? Não precisa simplesmente sumir do mapa e inventar histórias...
Ainda que essas histórias, na maioria das vezes, afrouxem o nó górdio da situação, a sensação de calhordice fica ardendo no estômago. E aquele era o momento pra dar um tempo de mentirinhas. Mentirinhas, essa era a palavra. Era hora do banho antes da festa, antes de decidir o que fazer. Saí do Café, senti o vento no rosto e perguntei que horas eram.
Às 10h40, apenas algumas nuvens acompanhavam a linha do horizonte e eu estava andando pelo cais, ou pela ponte, como os caiçaras se referem à passarela elevada de madeira que avança da terra sobre o mar, onde os barcos encostam. Fazia uma espécie de pesquisa de preços e horários para a travessia até a praia de Pouso da Cajaíba. O clima era de feira. Turistas e mochileiros zanzando pra cima e pra baixo à procura de passeios e travessias. A idéia era seguir à risca a recomendação de amigos que já haviam feito a trilha Martins de Sá – Sono (que na verdade é uma trilha mais extensa, pois começava em Pouso, passava por Martins de Sá, pelo Sono e terminava em Laranjeiras – praias do litoral sul do Estado do Rio). Ou seja: pegar um barco até Pouso e caminhar a partir de lá. Àquela hora, o sol estava rachando a moleira e mesmo tendo deixado a mochila num quiosque de bebidas e salgados, sentia o suor escorrer pelas costas. Havia embarcações de vários tamanhos, desde pequenas lanchas e canoas até escunas e veleiros de grande porte. A maioria dos barcos, no entanto, era de pescadores já haviam voltado do mar. Os que ainda permaneciam por ali podiam exibir o saldo da pescaria da manhã em pintados, dourados, agulhas, cumbuquinha, pinguili e cherés fresquinhos. O meu humor estava ótimo e não me importei em esperar aparecer um pescador disposto a me levar, por um preço razoável, desde que eu esperasse juntar mais gente para ir no mesmo barco.
Quando voltei pra onde estava minha mochila, alguém me cutucou. Parei de tomar um gole d’água, e vi o sorriso aberto de uma velha amiga que parou diante de mim com os braços abertos. Dei-lhe um abraço apertado e gostei de sentir seu perfume de lavanda em meio aquela maresia e mau cheiro de fim de pescaria. Ela tinha um tererê no cabelo que quase enganchou na haste dos meus óculos quando tentávamos nos desvencilhar do abraço. Constrangida, mas rindo à toa, Andréia (consegui lembrar logo seu nome) apresentou o namorado que vinha logo atrás. Conversamos animadamente e combinamos ir os três no mesmo barco para Pouso.
Aquele encontro casual no porto parecia encomendado já que meu objetivo era pensar bem no que fazer quando voltasse pra casa. Eu a conhecia há alguns anos, e o namorado há bem menos tempo. Depois que nos conhecemos, estabelecemos alguns contatos porque ela é excelente fotógrafa e fez alguns trabalhos para eventos de música em que eu participei. Certa vez, durante uma sessão de fotos rolou um clima, saímos juntos e nos beijamos. Nunca me esqueço da chuva e do pneu furado em plena Avenida Brasil quando fui deixá-la em casa e “ficamos” pela primeira vez. Ela namorava com um grande amigo em comum. Chegamos à casa dela bêbados e mesmo assim ela insistiu em mostrar toda sua discografia de música barroca em vinil sem se importar com o fato de estarmos encharcados. Foi divertido. Ela é esguia, branquela e atraente. Seu único defeito é que fala pelos cotovelos. Não resisti, ouvimos música e dormi por lá. Fiquei doente durante uma semana, mas ela, sentindo-se responsável, cuidou bem de mim, devo confessar. Ficou nisso. Meses mais tarde, ela ligou pra tomarmos um chopp e ficou reclamando do namorado que não gostava de acompanhá-la ao cinema e aos concertos que ela tanto gostava. Eu, que já namorava Lara, aproveitei uma brecha pra botar as coisas em pratos limpos e avisar que estava comprometido. Pra minha surpresa ela exclamou: Ótimo! E propôs sem meias palavras que nos encontrássemos de vez em quando na surdina. Naquele dia rolou. Mas depois ela entendeu que não tinha nada a ver pra mim, pois eu não estava tendo nenhum problema com minha namorada, muito pelo contrário. E, apesar de ela ser uma mulher interessante, não fazia meu estilo encarar uma vida dupla à moda antiga. Amantes... É tentador, mas não combina comigo. Meu ranço cristão acaba me impedindo de ir tão persistentemente neste pecado... Além disso, não dou conta nem de uma, que dirá de duas mulheres.
Foi engraçado lembrar de tudo aquilo subindo a bordo do barquinho que iria me levar a Pouso. Sete turistas estrangeiros se acomodavam perto de mim. Passei um pouco de bloqueador solar e observei o casal amigo discutir sobre alguma coisa que havia esquecido de trazer. O namorado de Andréia era simpático e começou a me explicar quanto tempo havia levado para ficar pronta uma imensa tatuagem que tinha nas costas. Eu fingia escutar, mas na verdade pensava em Lara. O meu drama na relação com ela não passava exatamente pela larga tradição machista de galinhagem, que, aliás, não acho que eu seja exatamente o melhor representante. O problema com Lara era simplesmente encarar a vida de casado. Afinal era disso que se tratava. Posso vê-la pendendo a cabeça para o ombro, levantando a sobrancelha, passando os dois braços ao redor do meu pescoço e me atirando aquela frase como se tivesse perguntando as horas: a gente devia morar junto logo... Assim. Simples e casual como ela gostava de falar quando queria dizer alguma coisa realmente importante. Será que ela falou sério ou estava me testando? Nem de perto, nossa relação estava essa maravilha toda. Namorar já era um desafio. Em diversos momentos me sentia sufocado e sem autonomia. Depois oprimido e angustiado. Mas ao mesmo tempo, consigo lembrar e sentir na pele um começo de namoro cheio de ternura e contentamento. Como é que essas coisas acontecem? É louco, é contraditório, mas é assim que acabo vivendo toda a confusão de estar com alguém. E agora, olhando o mar sendo cortado pelo casco do Água Marinha (nome pintado em letras azuis sob a proa) anunciando uma aventura há muito planejada e adiada, senti um misto de saudade dela, e de satisfação por estar sozinho!
E foi sozinho, mas ao mesmo tempo rodeado de gringos aventureiros que ouvi alguém gritar - golfinhos! Virei e vi um cardume coreografado desses mamíferos acompanhando o barco em alta velocidade. Nem no Globo Repórter aquilo pareceu tão incrível. Quase agradeci a deus ou ao destino, ou à sorte, ou ao quê ou quem fosse responsável por aquilo. Fui brindado pela sorte, concluí.
Ao meu lado uma pequena jovem argentina com lenço nos cabelos cheirava pequenos pedaços de casca de limão. Ela me contou que o cheiro de frutas cítricas, como o limão, funcionava para evitar enjôos. Mas o meu possível enjôo não viria do balanço do mar, nem da cachaça que os gringos me ofereciam e que já passava de mão em mão pelo barco. Viria do contrário daquela realidade virtual que construí – sol, mar, praia, ilha, barco, golfinhos, vento. Meu cenário mais verdadeiro talvez fosse, meu quarto vazio com paredes cinzas, guimbas de cigarro espalhadas pelo chão, uma luminária de luz fria sobre uma mesa de madeira comida pelo tempo, livros espalhados pelo chão, um colchão com uma mancha negra que não saía nem quando lavado ou deixado sob o sol, uma estante de música empenada e o barulho de carros e buzinas misturados com o vento frio que batia nas janelas de vidro. Talvez fosse esse o cenário correto. Mas eu queria fugir. E assim, tracei a minha rota de fuga; primeiro de ônibus até Paraty, depois de barco até a praia de Martins de Sá. Lá não haveria rastro da minha existência. Lá, seria apenas uma nada perdido em um paraíso que eu criaria pra mim mesmo. Um lugar lindo com pessoas lindas, como que me descreveram dois amigos uma vez na porta de um teatro, além de meu irmão que já tinha ido por lá.
Contudo, o fel da angústia turvava meus sentimentos. A sensação real era de covardia. Essa é a palavra. Por que ela não percebe? Por que eu fico falando sozinho pra mim mesmo? Por que as coisas sempre vão chegando a esse nível de insuportabilidade? Por que é que eu tenho que levantar no meio da noite só pra sair do lado dela? Sinto-me um covarde e um traidor por não falar. Por que é tão difícil? Se ela é tão legal, se é uma pessoa tão inteligente e bacana, vai compreender e, sendo otimista, vai até gostar de eu ter sido sincero. Ontem à noite, me deu vontade de chorar na cama ao seu lado. A cabeça dela no meu peito. Ela dormindo. Já estou antecipando o sofrimento na hora de acabar com tudo isso. Vai doer na hora em que eu tiver falando com ela, porque depois, ah... vou sofrer muito, mas vai ter que parar de doer em alguns dias ou algumas semanas. Que angustia... Porra, que medo de enfrentar uma situação que não consigo enxergar outra saída. É o velho medo de magoar o outro. Que merda isso de ficar ruim uma coisa que já foi tão boa.
(A menina argentina ofereceu-me um gole da sua garrafa d’água recostou-se nas mochilas amontoadas para tentar dormir. Pude ver uma ponta do biquíni dela e toda beleza que a partir daí saltou aos meus olhos e se concentrou como um formigamento entre as minhas pernas. Fechei os olhos).
Por que não sinto mais tesão por ela? Por que eu não sinto mais vontade de beijá-la? E será que ela não percebe, porra! Como é que eu vou falar isso com ela? Eu sei, não vai dar pra ser legal com ela e comigo ao mesmo tempo.
Já me bateu até a dúvida: se é assim que vai ser a partir do dia em que eu tiver que me contentar com uma relação sem tesão. Esse dia vai chegar? Será que eu nunca me apaixonei de verdade ou eu não consigo me apaixonar pra manter uma relação por muito tempo? Esse questionamento não vai me levar a lugar nenhum, pois provavelmente não irei aprender a me relacionar de maneira diferente. Ou vou?
Deixa eu lembrar, já rolou por mais de dois anos com outras mulheres. Sinto que fui apaixonado por todas e que simplesmente acabou. Como um fogo que vai apagar, quer queira quer não. É que a gente não sabe e nem pensa sobre isso quando ele, o fogo, começa. Quando começa é uma beleza, só intensidade, curtição, descoberta, vontade de ficar junto. Na verdade a pergunta principal é: por que é tão doloroso quando acaba já que racionalmente eu sei que um dia vai acabar? Sempre vai acabar. Igual morrer.
Eu tenho que ser otimista. Ela vai entender, caralho! Eu não consigo dar um beijo de língua e ela não percebe isso? Não é possível!
Hoje já estive até tentando compreender a perspectiva dela... Talvez ela esteja acostumada a uma relação mais morna e tenha sempre procurado um futuro marido... Mas eu já dei várias dicas de que não acredito em casamento e etc.
Eu me sinto mesmo um covarde, mas, porra, será que ela não podia me dar uma brecha pra que o papo pudesse rolar de maneira que ela não fosse pega de surpresa?
Tive pensando: Eu não entendo terapia de casal. Como é que você reverte a falta de vontade de beijar na boca? Afinal, ela continua sendo uma pessoa super legal. Será que seria legal pedir pra dar um tempo? Existe isso? Dar um tempo...
Eu nunca perdi a vontade de transar com as minhas namoradas anteriores. Na maioria das vezes, o sexo era a única coisa que segurava a relação. E quando penso nelas, me dá saudades - inclusive saudade de transar com elas. Quero dizer, não voltaria a namorá-las, porque já deu o que tinha que dar, mas se rolasse um sexo casual tenho certeza que seria maravilhoso. Agora é o oposto. Ela continua sendo a pessoa interessante que sempre foi, mas não sinto nenhum desejo. Já tive conversando isso com alguns amigos... sem uma resposta de consolo.
Eu tenho mesmo uma tendência a querer me livrar das coisas que não estão sendo agradáveis. É como se a vida pudesse não ter tempo ruim, então, me livrei de cursos, pessoas, trabalho, etc. Não consigo ter esperança de que aquilo que acho ruim, chato, um saco, vá melhorar, a não ser quando sou obrigado a continuar. Será que já consegui fazer alguma coisa por mais de, sei lá, seis, sete anos? Porra! Eu namoro há seis meses! Apenas seis meses.
O agravante também é que ela é super caseira e companheira. A gente dorme junto todo dia praticamente. Sinto-me muito casado. Talvez seja isso que incomode tanto. E se eu pedir pra gente se ver só de vez em quando?... Mas não é isso que eu quero verdadeiramente. Eu quero é estar apaixonado e pleno de tesão por alguém. Isso ainda existe? Claro que sim. Já estive tantas vezes... Às vezes chego a ter dúvidas.
Toda aquela gente no barco se havia desaparecido na névoa que o meu conflito produzia. Perdi o começo de uma piada que um italiano acabara de contar e que fez todo mundo desabar de rir. Perto de uma entrada de mar, havia dois veleiros ancorados e houve uma ligeira confraternização quando um barco igual ao nosso cruzou à distância.
Não demorou muito até chegarmos ao Pouso para desembarcarmos e seguirmos a pé. Andréia e o namorado desceram e me esperavam na praia. O resto do grupo se espalhou pelas barraquinhas ao longo da praia. Fiquei por último no barco e pedi para o barqueiro levar minha mochila pra areia. Só de sunga, saltei do barco e nadei até a areia. A sensação era de conquista. Ao chegar molhado e andar sobre aquela praia linda, cheia de barquinhos e casebres coloridos, fiz um batismo caiçara. Senti-me finalmente em terra brazilis, em praia de mata atlântica intocada, no que ainda resta dela no Brasil.
O resto da história ainda ia ser vivido quando me dei conta de que todo aquele cenário deslumbrante seria palco privilegiado para um dos meus vários dilemas. Como lidar o com a falta de amor? Como enxergar isso e não me sentir esturricado de autocomiseração. Lara merecia uma resposta, uma explicação, uma decisão que eu preparava, que eu gestava durante aqueles momentos. Ali, num espaço privilegiado de interação com a natureza e comigo mesmo eu reuniria forças, sairia do papel de covarde e provaria do amargo encontro com a verdade. Uma verdade misturada de lembranças e sentimentos fortes, com dor e vazio na alma. Quem sou eu? Precisava chegar a uma solução, ainda que provisória. Na minha própria fragilidade, tentava me acercar de novos ares, antigos afetos casuais, desafios físicos na relação com a mata virgem e possíveis descobertas amorosas que me dariam um banho de vida, da mesma vida renovada e alegremente vivida que eu ansiava.
O sol se punha às minhas costas quando comecei a caminhada que me levaria à encantadora praia de Martins de Sá.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Cozinha

Cozinha é onde a gente come. Cozinha é onde a gente conversa.
Mas é também de onde eu ouço a conversa que vem de uma outra cozinha. Quer dizer... de onde ouvi certa vez o casal do apartamento ao lado entrar numa briga que começou com um grito de “eu vou te matar”. Bom, pelo menos, o crime não tinha acontecido e eu achei que ouvindo a conversa poderia evitar a tragédia. Fiquei na espreita.
Abri a geladeira e fechei. Como é forte a luz que vem ali de dentro. Acho que vou fazer um café. Chaleira no fogo. Um cheiro ruim empesteou o ambiente.
“Mentiroso” - outro grito feminino. Barulho de panelas. Resumo da ópera: ele é mentiroso e ela vai matá-lo. Sabe de uma coisa? Eu não vou evitar porra nenhuma. Eles que briguem porque isso não vai dar em nada e eu tô mais é com vontade de ouvir a briga deles por pura curiosidade mesmo. Voyeurismo auditivo. Fofoca, pronto.
Tem alguma coisa podre na geladeira, é óbvio. Vou ter que abrir aqueles potes de comida, vou ter que investigar. Merda, vou dar uma de Sherlock de comida estragada. O queijo não é...
“Vai fazer terapia” – voz masculina. Bom, esse cara eu conheço, já cruzei com ele na escada. Não me parece má pessoa. Tem um Passat preto e gosta de plantas: vive deixando uns vasinhos no jardim do prédio. Terapia... Pelo menos morte não vai ter.
A água ferve e a chaleira apita. Corri pra apagar, não queria acordar minha namorada que estava dormindo. Já era de madrugada. Passei o café no coador. Acho que vou ascender um cigarro pra passar o tempo. Não, que nada. Vou tentar limpar na geladeira que o fedor tá forte. Tomei o café. Abri de novo a geladeira. Puta cheiro.
Silêncio. Acho que fizeram as pazes. Melhor. Casal é assim mesmo. De repente estavam até brincando. Não... mandar fazer terapia é pior que mandar ir a merda. Acho que era sério mesmo.
Resto de macarrão, ta bom. Resto de feijão carreteiro... tá bom mas vou jogar fora. Resto de picles condimentado, isso não estraga. Tem umas folhas ali embaixo...
“Aquele livro era meu” – voz feminina. Eu não conhecia a moça. Estranho não ter cruzado com ela ainda. Mas sei que gosta do Zé Ramalho e do Raul Seixas e os ouve num volume alto, no chuveiro, cantando. Canta relativamente bem, não é das mais desafinadas. Bom, deve ter ciúme dos livros, deve ser fã do Coelho - sei lá. Briga é foda. Começa às vezes por uma besteira, um livro, uma louça suja, um telefonema tarde. Mas também pode ter sido por ciúmes, dinheiro, coisa séria.
Aquele maço de couves no fundo da gaveta. Já era há muito tempo. Tá todo melado. Lixo pra ele. Pronto. Agora o cheiro tem que passar.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Sala

Subi as escadas tropeçando pelos degraus até parar em frente à porta. Dava pra sentir a vibração do som que vinha de dentro do apartamento. Respirei fundo, pra recuperar o ar e me preparar pra seguir em frente. Lembrei de como fazia na borda da piscina, nas aulas de natação. Agora era a hora do mergulho. Meu corpo se retesou pra sentir as condições de temperatura e de pressão. Entrei.
A sala. Meu olhar resistiu à força de atração que vinha de fora, da janela. Segurei a vontade de ir até lá e chequei tudo ao redor. Sabe quando as pupilas se congelam fixando um ponto qualquer e aí você se dá conta que está com olhar estático, mas continua parado? Foi mais ou menos assim que vi algumas formigas caminharem sobre a mesa. Ouvi a balada da Nora Jones e achei tinha uma relação entre o som e as formigas. Saí do transe do olhar fixo para voltar as costas para janela. "Espera... que eu já vou, espera que os olhos na minha nuca vão tomar conta da janela, que aquela claridade não vai me cegar enquanto eu estiver de costas".
Aí vi a estante. Tinha uns dois metros por 80 de largura, madeira escura maciça, cinco prateleiras dispostas irregularmente. Diante dela, eu ficava no meio do caminho pra a janela, no meio da sala. Fechei os olhos, a canção dizia "come away with me, let everything drop from your hands" . Fechei e abri as mãos rapidamente. De olhos fechados, a escuridão só veio muito tempo depois, e ao abri-los, a luz esverdeada da janela permaneceu como uma teia sobe os livros. Da prateleira de baixo, um cheiro de mofo confirmava infiltração da parede. Aquilo me agoniava.
A janela. Meia volta e minhas duas mãos apoiadas no parapeito da janela. Meia dúzia de árvores altas e um jardim bem cuidado logo abaixo. Olhos fechados de novo, como num ditado melódico: quatro pios de pássaros compunham a nova trilha. Cabeça pra fora e um céu de nuvens escuras no alto. Uma, duas, três,... sete árvores e meus braços estendidos para alcançá-las.Virei-me, cinco prateleiras lotadas de livros. A música parou e as formigas continuaram dançando. Seriam as testemunhas. Com as mãos inchadas e dormentes, tentei estalar os dedos, sem sucesso. Corri e apanhei dois livros de arte, desses com pintores famosos, e mais quatro de paisagismo. Livros grandes são ótimos pra começar.
Olhei pra janela e joguei-os com toda força. O inchaço das mãos melhorou e ganhei mais coragem: eu ia e vinha correndo, ofegante, da janela para a estante, da estante para a janela, fazendo os arremessos. Ia, pegava, vinha, jogava e ia de novo. Foi uma revoada de páginas pela sala e da janela pra fora. Um farfalhar de páginas ao léu. (Acabei desenvolvendo três tipos de arremessos: à distância, com toda força; em espiral, para vê-los rodopiarem; e em queda livre, simplesmente soltando-os). Os livros menores eu os jogava mais longe. Literatura americana, inglesa, francesa, livros de história, de teoria musical, de psicanálise ganharam liberdade; antes tarde do que nunca. Todas aquelas palavras, todas aquelas frases soltas no ar, plainando em seus livros alados. "Voem, encontrem seus destinos, sejam lá quais forem". Durou pouco, a estante era pequena. Tive o cuidado de não deixar um único livro.
Pronto, já foram. Paz restabelecida. Aliviado, ascendi um cigarro.

Quarto

Quando eu a conheci num corredor de faculdade, tudo que imaginei foi o dia em que ela entraria no meu quarto. Sentado na cama sobre o edredom bege quadriculado, esperando a campainha tocar, mais uma vez:
1. Ela vai chegar e vai querer colocar a bolsa em cima da mesa, e dar aquela espreguiçada virando todo o corpo pra trás. Aí vai perguntar o que eu estou pensando, e vai soltar o cabelo. Eu não vou dizer nada e continuar olhando fixamente pra boca dela que é a parte dela que eu mais gosto. Ela vai querer me mostrar alguma linha de contrabaixo que ela anda compondo, só pra dar a impressão que nem tá tão afim, que por sua vez é pra dar a chance de eu tomar a iniciativa. Vai ligar o ipod e sentar ao meu lado encostando todo o lado da sua perna na minha. Vou perguntar se ela não quer que eu feche a porta e ela vai dizer que sim e vai sugerir que eu apague luz. Quando eu levantar pra fechar a porta, vou ascender o abajur e abrir a janela, tá quente, não ta? Ela, parada vai continuar olhando pro ipode e responder unrhumm, balançando a cabeça. Eu vou beijar levemente a nuca dela, ela vai olhar pra mim. Eu vou olhar bem dentro de cada íris, de cada pupila dilatada e me perder dentro daquele mar insondável.
2. Ela vai chegar e colocar a mochila em cima da cama enquanto ascende um cigarro.
Eu vou apanhar o cinzeiro e abrir apenas uma fresta da janela - faz frio, venta.
“Acho que vai chover...” vai comentar sem olhar pra mim.
Detesto quando ela ascende o cigarro dentro do quarto.
“Sabe aquela música do Blur que eu tô tirando no baixo?”
“Não”. A fumaça azulada vai vir em minha direção.
“Ajuda a tirar minha bota?”
“Ajudo. Mas primeiro tira elas de cima da cama”.
Ela vai olhar pra mim séria, obediente. Eu vou desamarrar os cordões da bota pacientemente. Ela vai me contar como é que foi mal atendida no banco. Eu vou soprar a fumaça pra longe de mim e abrir um pouco mais a janela. Ela vai descrever como brigou com um cara no trânsito, como saiu do carro e botou o dedo na cara dele, não viu meu carro não?
“Me dá o outro pé”.
“Filho da puta, ainda ficou dizendo que eu tava nervozinha”.
Eu detesto quando ela fica nervozinha e aperta o lábio.
Vai olhar pro teto, estalar os dedos e dar aquela espreguiçada pra trás com os pés no meu colo.
“Tua meia tá molhada”.
Ela vai tirar os pés do meu colo.
Vou olhar pra janela. “Não vai chover “.
“Unrhumm”, ela, de olhos fechados.
Eu de pé: “Vou dar uma saída”.
“Tá.” E vai ligar a televisão.

3. O tempo vai passar e a campainha não vai tocar.

lamber os beiços

Todo o meu penar foi de lamber os beiços, lamber a pena úmida que vinha de mim, querência de saber o porquê de tudo, por que essa corda solta no meu violão?
Todo o meu lamber foi de uma pena danada, pena da danada que me molhava a boca, gota salgada do despejo súbito, casa caída no meu coração.
Todo o meu sofrer foi de cuspir na cara, cuspir na minha culpa por não ter amado, não ser culpado por algum desgosto, um gosto amargo pra minha canção.