quinta-feira, 9 de julho de 2009

A praça

Todo o tempo que eu tivesse teria que fluir como um vento tranqüilo, mas rápido. Eu desci as escadas do hotel pulando os degraus e saí na praça, onde um rebuliço tomava as mesas espalhadas em frente aos cafés. Gente andando, gente sentada bebendo, rindo, falando alto. Vesti o casaco que trazia amarrado na cintura e medi o espaço atentamente. Vou sair por aquele arco à direita que dá para a avenida do shopping. Mas antes vou passar pelo café onde estão todos os músicos, já vestidos em seus smokings e longos pretos, com instrumentos a tiracolo esperando a hora de entrar no teatro ao lado. O teatro ao lado do hotel. O hotel, o teatro Sta. Cecília, a padroeira, a nos esperar. O teatro, o hotel e os cafés num quadrilátero neoclássico.
Diante do café, de costas para os músicos, um bicicletário. De bike vai ser mais rápido até o shopping. Uma flautista me tirou do transe momentâneo diante das biciletas. Ela usava um cachecol que enganchou na minha barba quando beijei seu rosto. Seu sorriso triste me deu vontade de ficar pra conversar, mas zarpei. Despedi-me de todos rapidamente e corri pro shopping.
Um mar de gente de casacos andava na contracorrente, o vento também. Decidi correr pra compensar o vento que me jogava pra trás. Apenas as maçãs do rosto estavam geladas. Meus olhos lacrimejaram de frio. Venci a distância até o shopping e adentrei a porta giratória. Era um desses shoppings que imitavam uma mini-cidade. Dentro e fora dele, a sensação era de estar fora, sempre fora. Caminhei rapidamente por lojas e quiosques, onde já não havia muita gente pra cruzar. Entrei numa loja na seção de alimentação, numa loja de departamento, numa loja muito grande, com uma praça de alimentação dentro da loja. Agora a sensação era de estar dentro, sempre dentro do shopping.
Pronto, agora preciso voltar, o concerto já vai começar. Que horas são? Preciso tomar um café pra me esquentar. A moça do caixa da loja de departamento usava um uniforme igual ao da moça que recebia o convite na entrada do teatro, que tinha o cabelo igual ao da moça que trabalhava na recepção do hotel. Tenho que voltar. O café vai ficar pra outra hora. Os músicos já devem estar se dirigindo pro teatro.
O tempo agora não fluía tão rápido como o vento gelado lá fora. Ainda tinha que pegar o violino no hotel e me vestir. Depois que atravessei a porta giratória e me vi na avenida, achei que havia mais gente na rua. Perguntei as horas pra um mendigo sentado que pareceu não compreender o que eu estava dizendo. Havia realmente mais gente na rua. Deveria correr, sentia as pernas densas como um rio depois da chuva. Todas aquelas pessoas estavam indo na mesma direção que eu. Pedi passagem entre elas, mas parecia uma fila de entrada em trem de metrô. Congestionamento na entrada da praça. Tem que haver outro arco de entrada do outro lado. Permaneci teso em meio ao mar de casacos escuros. Respirei fundo pra forçar uma resignação, como única forma de ser.
Já não havia mais quase ninguém sentado nas mesinhas dos cafés. Poucas luzes acesas nos cafés. Muitas luzes vindas do teatro apinhado de gente. Venci a resistência, no saguão do hotel, sorri pra a moça da recepção e subi as escadas. Não tinha mais ninguém no hotel. Agora tinha braços e pernas engessados de uma falta de fluidez abissal. O tempo estava rijo. Com dificuldade, tirei o smoking do armário, olhei meu estojo com o violino sobre a cama. Já devem estar todos prontos pra entrar em palco. E o ar parado dentro do quarto. As cortinas imóveis. A janela anunciando a minha imobilidade. Lá fora, a praça. A praça com os cafés, o teatro, o biciletário e poucas pessoas caminhando. Já não há condições de continuar.