quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Sala

Subi as escadas tropeçando pelos degraus até parar em frente à porta. Dava pra sentir a vibração do som que vinha de dentro do apartamento. Respirei fundo, pra recuperar o ar e me preparar pra seguir em frente. Lembrei de como fazia na borda da piscina, nas aulas de natação. Agora era a hora do mergulho. Meu corpo se retesou pra sentir as condições de temperatura e de pressão. Entrei.
A sala. Meu olhar resistiu à força de atração que vinha de fora, da janela. Segurei a vontade de ir até lá e chequei tudo ao redor. Sabe quando as pupilas se congelam fixando um ponto qualquer e aí você se dá conta que está com olhar estático, mas continua parado? Foi mais ou menos assim que vi algumas formigas caminharem sobre a mesa. Ouvi a balada da Nora Jones e achei tinha uma relação entre o som e as formigas. Saí do transe do olhar fixo para voltar as costas para janela. "Espera... que eu já vou, espera que os olhos na minha nuca vão tomar conta da janela, que aquela claridade não vai me cegar enquanto eu estiver de costas".
Aí vi a estante. Tinha uns dois metros por 80 de largura, madeira escura maciça, cinco prateleiras dispostas irregularmente. Diante dela, eu ficava no meio do caminho pra a janela, no meio da sala. Fechei os olhos, a canção dizia "come away with me, let everything drop from your hands" . Fechei e abri as mãos rapidamente. De olhos fechados, a escuridão só veio muito tempo depois, e ao abri-los, a luz esverdeada da janela permaneceu como uma teia sobe os livros. Da prateleira de baixo, um cheiro de mofo confirmava infiltração da parede. Aquilo me agoniava.
A janela. Meia volta e minhas duas mãos apoiadas no parapeito da janela. Meia dúzia de árvores altas e um jardim bem cuidado logo abaixo. Olhos fechados de novo, como num ditado melódico: quatro pios de pássaros compunham a nova trilha. Cabeça pra fora e um céu de nuvens escuras no alto. Uma, duas, três,... sete árvores e meus braços estendidos para alcançá-las.Virei-me, cinco prateleiras lotadas de livros. A música parou e as formigas continuaram dançando. Seriam as testemunhas. Com as mãos inchadas e dormentes, tentei estalar os dedos, sem sucesso. Corri e apanhei dois livros de arte, desses com pintores famosos, e mais quatro de paisagismo. Livros grandes são ótimos pra começar.
Olhei pra janela e joguei-os com toda força. O inchaço das mãos melhorou e ganhei mais coragem: eu ia e vinha correndo, ofegante, da janela para a estante, da estante para a janela, fazendo os arremessos. Ia, pegava, vinha, jogava e ia de novo. Foi uma revoada de páginas pela sala e da janela pra fora. Um farfalhar de páginas ao léu. (Acabei desenvolvendo três tipos de arremessos: à distância, com toda força; em espiral, para vê-los rodopiarem; e em queda livre, simplesmente soltando-os). Os livros menores eu os jogava mais longe. Literatura americana, inglesa, francesa, livros de história, de teoria musical, de psicanálise ganharam liberdade; antes tarde do que nunca. Todas aquelas palavras, todas aquelas frases soltas no ar, plainando em seus livros alados. "Voem, encontrem seus destinos, sejam lá quais forem". Durou pouco, a estante era pequena. Tive o cuidado de não deixar um único livro.
Pronto, já foram. Paz restabelecida. Aliviado, ascendi um cigarro.