sábado, 14 de fevereiro de 2009

Cozinha

Cozinha é onde a gente come. Cozinha é onde a gente conversa.
Mas é também de onde eu ouço a conversa que vem de uma outra cozinha. Quer dizer... de onde ouvi certa vez o casal do apartamento ao lado entrar numa briga que começou com um grito de “eu vou te matar”. Bom, pelo menos, o crime não tinha acontecido e eu achei que ouvindo a conversa poderia evitar a tragédia. Fiquei na espreita.
Abri a geladeira e fechei. Como é forte a luz que vem ali de dentro. Acho que vou fazer um café. Chaleira no fogo. Um cheiro ruim empesteou o ambiente.
“Mentiroso” - outro grito feminino. Barulho de panelas. Resumo da ópera: ele é mentiroso e ela vai matá-lo. Sabe de uma coisa? Eu não vou evitar porra nenhuma. Eles que briguem porque isso não vai dar em nada e eu tô mais é com vontade de ouvir a briga deles por pura curiosidade mesmo. Voyeurismo auditivo. Fofoca, pronto.
Tem alguma coisa podre na geladeira, é óbvio. Vou ter que abrir aqueles potes de comida, vou ter que investigar. Merda, vou dar uma de Sherlock de comida estragada. O queijo não é...
“Vai fazer terapia” – voz masculina. Bom, esse cara eu conheço, já cruzei com ele na escada. Não me parece má pessoa. Tem um Passat preto e gosta de plantas: vive deixando uns vasinhos no jardim do prédio. Terapia... Pelo menos morte não vai ter.
A água ferve e a chaleira apita. Corri pra apagar, não queria acordar minha namorada que estava dormindo. Já era de madrugada. Passei o café no coador. Acho que vou ascender um cigarro pra passar o tempo. Não, que nada. Vou tentar limpar na geladeira que o fedor tá forte. Tomei o café. Abri de novo a geladeira. Puta cheiro.
Silêncio. Acho que fizeram as pazes. Melhor. Casal é assim mesmo. De repente estavam até brincando. Não... mandar fazer terapia é pior que mandar ir a merda. Acho que era sério mesmo.
Resto de macarrão, ta bom. Resto de feijão carreteiro... tá bom mas vou jogar fora. Resto de picles condimentado, isso não estraga. Tem umas folhas ali embaixo...
“Aquele livro era meu” – voz feminina. Eu não conhecia a moça. Estranho não ter cruzado com ela ainda. Mas sei que gosta do Zé Ramalho e do Raul Seixas e os ouve num volume alto, no chuveiro, cantando. Canta relativamente bem, não é das mais desafinadas. Bom, deve ter ciúme dos livros, deve ser fã do Coelho - sei lá. Briga é foda. Começa às vezes por uma besteira, um livro, uma louça suja, um telefonema tarde. Mas também pode ter sido por ciúmes, dinheiro, coisa séria.
Aquele maço de couves no fundo da gaveta. Já era há muito tempo. Tá todo melado. Lixo pra ele. Pronto. Agora o cheiro tem que passar.